sábado, 2 de julho de 2011

Sobre universidades e seus "níveis"

Hoje, só pra variar um pouco, trataremos de um assunto polêmico: a recente adoção integral, por parte da Universidade Federal do Rio de Janeiro, do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) como única prova a ser realizada por aqueles que pretendem ingressar nos cursos daquela universidade (recomendo, para que haja um bom entendimento do presente texto, que o link acima seja lido).

A princípio, uma nota de sinceridade deve ser feita por mim: eu não sou, nem de longe, um especialista no assunto “educação”. Sendo assim, meu objetivo aqui se prende aos meus limites: não vou entrar – ou entrarei tanto quanto me for possível – numa discussão sobre a legitimidade, a eficiência ou o método do ENEM enquanto forma de avaliação da qualidade do ensino no Brasil e como forma de acesso às vagas em universidades. Ao invés disso. buscarei discutir com algumas formulações que tenho ouvido e lido por aí, as quais atacam a medida da UFRJ.

Ao notar a indignação de algumas pessoas quanto à questão, preocupei-me ao perceber que na maioria dos casos (mas não em todos, evidentemente)lançava-se mão de argumentos excessivamente elitistas para a defesa dos pontos de vista: ao que parece, a adoção do ENEM estaria aí para “diminuir o nível” da Universidade, posto que esse exame seria mais “fácil” do que era o tradicional vestibular da UFRJ.

Particularmente, não vejo o ENEM como uma prova muito adequada para a avaliação dos estudantes: ele realmente é excessivamente longo, constituindo-se mais em teste de resistência do que em uma mensuração de conhecimento e de habilidades cognitivas. Isso, porém, é secundário para a nossa argumentação. Nosso ponto, aqui, diz mais respeito ao fato de que muita gente – gente capaz, inteligente (o que até assusta mais) – acha que o ENEM é pouco “seletivo”, e coloca alunos “bons” – leia-se: alunos oriundos de escolas em sua maioria caras e de camadas mais abastadas de nossa sociedade – mais ou menos em pé de igualdade com alunos “ruins” – ou seja, alunos oriundos de escolas públicas, de escolas particulares mais baratas e de camadas menos abastadas de nossa sociedade. Em suma: quase todo mundo entende (como eu) que a adoção do ENEM é um tipo de ferramenta de inclusão de estudantes pobres e/ou vindos de escolas públicas em cursos de nível superior, vendo, porém (diferentemente de mim), essa inclusão como algo que potencialmente diminuirá o “nível” dos cursos de graduação.

Na minha humilde opinião, esse tipo de argumento é furado por uma série de razões. Em primeiro lugar, até onde eu sei as universidades que adotaram o sistema de cotas, por exemplo – o qual, supostamente, também diminuiriam o “nível” dos cursos universitários por ser um sistema inclusivo e "pouco meritocrático" – perceberam que os alunos que alcançam o ensino superior por esse meio possuem um desempenho tão bom quanto seus colegas que prestaram o vestibular tradicional. Portanto, tendo sido derrubado pelos fatos esse senso comum grosseiro e extremamente elitista, fica a seguinte questão: qual é, afinal, o problema de se excluir o vestibular “tradicional” e se estabelecer uma avaliação que coloque em pé de (suposta) igualdade tanto os estudantes menos dotados de vantagens materiais e aqueles alunos que têm dinheiro para serem adestrados pelos cursinhos pré-vestibulares?

Feita de maneira breve essa discussão,ainda ficam alguns problemas. O mais importante deles está ligado ao argumento de que “são os alunos que fazem a universidade”, e que portanto alunos de escolas públicas que são pobres puxariam para baixo as universidades. À parte a já denunciada natureza sofismática do argumento, ele possui um outro erro: ao que parece, o que constrói o sistema educacional e sua qualidade é o “esforço” individual dos alunos. Em algum nível, isso até é verdade. Entretanto, se entendemos e concordamos um pouco com Bourdieu (que, grosso modo, afirma que as desigualdades sócio-econômicas se reproduzem dentro do sistema educacional), também é verdade que a qualidade do desempenho escolar/universitário é infinitamente mais difícil para pessoas mais pobres – e, assim, o pensamento meritocrático vulgar cai por terra, já que não estamos falando de sujeitos que partem de lugares iguais e que dispõem de tempo e oportunidades semelhantes.

Sendo assim, se queremos um sistema educacional mais igualitário, devemos sim apoiar a inclusão de estudantes oriundos de camadas mais pobres no sistema universitário – afinal, o mérito é uma coisa que, na maioria dos casos, não passa de uma falácia elitista. Porém, isso por si só não basta: se não são dadas aos alunos condições materiais para que continuem seus estudos, o mesmo sistema perverso acaba se reproduzindo, acontecendo, por exemplo (como já acontece), o número absurdo de evasão que observamos na maioria dos cursos de graduação. E se, ao mesmo tempo – ou não – queremos um sistema universitário de “nível elevado”, não devemos nos dirigir contra os estudantes mais pobres como se eles fossem párias responsáveis pela decadência da universidade. Ao invés de concentrarmos nossa atenção contra o método de inclusão de novos alunos, deveríamos garantir que nossos professores fossem bem pagos e qualificados, que nossos laboratórios fossem bem equipados, que a estrutura física da universidade possibilitasse uma melhor formação. Deveríamos, por exemplo, protestar contra os cortes feitos no orçamento do Ministério da Educação – algo contra o que, aliás, pouca gente parece se indignar – ao invés de acharmos que pobre não tem direito de se formar no ensino superior.

P.S.: aqui, encontram-se dados relativos à política de cotas da UERJ. Dá uma olhada, que mesmo na crueza dos números já ficam óbvias algumas coisas que estão mais ou menos presentes no texto acima.

P.S.2: Aqui, uma crítica ácida, competente e precisa direcionada ao discurso preconceituoso e elitista das pessoas "esclarecidas" que se posicionaram contra essa óbvia profanação da sacralidade institucional da UFRJ.

2 comentários:

Meott disse...

Achei genial sua colocação, que segue mais ou menos o rumo da minha opinião também. Fiquei bastante feliz com a adesão da UFRJ ao enem, pois democratiza o acesso ao ensino numa das mais renomadas e com maior número de vagas universidades do país. (Fico me perguntando o que até agora impede a minha de ter feito o mesmo.) Com todos os problemas que o enem apresenta, ainda é a melhor oportunidade de oferecer acesso, num modelo, que a meu ver, valoriza um tipo de conhecimento mais universal e menos conteudista, podendo favorecer alunos de escola pública. (Que na minha opinião deveriam ter direito, a no mínimo, 50% das vagas reservadas). Parabéns pela opinião acertada e notavelmente contra-majoritária. Um grande abraço.

Obs: Apenas uma correção, o corte orçamental foi feito pelo Min. do Planejamento, que refletiu em todos os níveis do governo federal.

Anna Luiza Azevedo disse...

Concordo muito com tudo o que voê escreveu. Minha única crítica a essa adesão é se, a partir disso, pensarão em elaborar o ENEM de uma maneira mais séria, já que será a única via de acesso à uma instituição federal de ensino. Provas que são roubadas, cartões de respostas trocados... minha preocupação é muito mais quanto à organização desse exame do que com o que defendem alguns outros argumentos. Enfim... gostei muito do texto! Beijo, beijo.