segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Beethoven e eu

Tem gente que considera a nona sinfonia de Beethoven a melhor coisa que o ser humano, enquanto espécie, conseguiu realizar.

Não que minha opinião conte de alguma coisa, mas eu discordo. Apesar de desconhecer qualquer coisa relativa a harmonia, arranjo, orquestração, em suma, a qualquer tipo de aspecto técnico da música, minha experiência de apreciador da arte me faz querer simplesmente dizer o que eu penso sobre a obra do grande gênio alemão.
A meu ver, o que há de mais belo na obra de Beethoven são dois de seus quartetos de cordas: os de número 14 e 15. Essas, sim, são obras para serem colocadas ao lado da roda, do futebol e da internet como duas das mais fantásticas coisas que a humanidade produziu. Escutar tais composições me faz pensar que, apesar dos pesares, nossa passagem pelo mundo não está sendo de todo ruim.

Esses quartetos de que falo não são grandiosos como a Nona (aliás, o formato de quarteto de cordas sequer permite esse tipo de grandiosidade), nem têm aquela admiração suave e sincera pela natureza da Pastoral; tampouco transbordam aquela emoção rasgada do concerto para violino em Ré Maior. São obras simples, contidas, e que, ao mesmo tempo, chegam muito perto de transmitir com exatidão a complexidade da alma humana.

Tal fato acontece porque Beethoven percebeu que nós, animais culturais, não vivemos pelas grandes causas. Muito embora acreditemos, por vezes, que dedicamos nossa vida ao mundo, somos, ao fim e ao cabo, um composto de emoções que se chocam, que se sobrepõem, que se substituem, que coexistem. Nossa maior luta é interna, posto que dentro de nós inúmeras vozes falam e calam, sobem e descem, aparecem e desaparecem, e é nisso que estamos verdadeiramente concentrados. O resto, a manifestação externa do resultado dessas lutas, é de fato o que há de menos importante.

Enquanto mostramos ao mundo a nossa constância, a nossa coerência, vivemos atormentados por nós mesmos. Queremos mudar, mas acreditamos que devemos às pessoas a manutenção de nossas posições. Baseamo-nos em indivíduos imutáveis, e acreditamos em sua vontade férrea; entretanto, ao escutar os quartetos de Beethoven, descobrimos que outras pessoas perceberam aquilo que é universal no homem: sua inconstância. E é esta a constatação que me mantém vivo: saber que eu não sou único, e que todos sentem o mesmo que eu.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Sobre Tropa de Elite 2

Quem quer que me conheça pelo menos um pouquinho, sabe que eu sou uma pessoa que adora falar de assuntos polêmicos. Sendo assim, após assistir a uma película tão polêmica quanto Tropa de Elite 2, não poderia me furtar o direito de fazer alguns cometários quanto a ela.

Antes, porém, desses comentários, gostaria de dizer que, apear das ressalvas que apresentarei a seguir, eu gostei do filme. Afora a forçada união de Fraga com a ex-mulher do cap. Nascimento, achei o roteiro do filme muito bem amarrado, com todos os personagens sendo bem explorados em todas as suas dimensões e, principalmente, bem representados pelos atores que participam do longa.

Mas, apesar dessas qualidades, Tropa de Elite 2 é um longa comum em termos cinematográficos, não sendo nenhuma obra de arte. O que há de mais interessante, de mais rico nesse filme, é o quadro político-social que ele nos apresenta, bem como suas críticas e suas denúncias. Sendo assim, é precisamente sobre tais pontos que eu concentrarei minhas atenções.

Em primeiro lugar, Padilha e sua trupe sabem que o espectador de seu filme não é idiota. Assim sendo, ele sabia que todos enxergariam, em Tropa de Elite 2, determinados personagens da cena política e do cotidiano do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, os fatos ocorridos ao longo da narrativa possuem uma imensa semelhança com a realidade: a invasão ao presídio, a milícia tomando a Zona Oeste... tudo isso é coisa que qualquer bom carioca sabe que é verdade. Portanto, o longa tem, sim, um tom de denúncia dirigida à realidade de nossa cidade. Ele não é uma alegoria política como, por exemplo, O cavaleiro das trevas de Chris Nolan.

Nesse sentido, enquanto documento etnográfico, Tropa de Elite 2 é irrepreensível. Demonstra um imenso conhecimento histórico, bem como uma percepção aguçadíssima de como verdadeiramente são as entranhas da polícia, da criminalidade e das instituições políticas do Rio de Janeiro (a consultoria de ex-policiais, políticos e sociólogis tem um grande papel nisso). Com isso, os espectadores certamente saíram do cinema conhecendo melhor o tal do "sistema" de que tanto fala o cap. Nascimento.

Entretanto, a meu ver, as novidades trazidas pelo filme não vão muito além disso.Como acontece em seu antecessor, Tropa de Elite 2 falha não por ser maniqueísta, como muitos disseram (ao contrário de muita gente, eu não acho que o cap. Nascimento tenha sido colocado como um herói matador de bandidos). Sua principal falha foi, em minha opinião, sua covardia na hora apontar o dedo na cara dos verdadeiros culpados pela triste situação de nossa cidade e de nosso estado.

Acontece que é muito simples, como fazem Tropa de Elite e Tropa de Elite 2, escolher um segmento de nossa sociedade e culpá-lo por todos os problemas: naquele, a culpa era do maconheiro; nesse, a culpa é dos políticos (em uma das últimas cenas, Nascimento sugere que a culpa do terrível panorama apresentado é culpa do presidente). Isso é o mais rasteiro senso comum, que habita nosso dia-a-dia no discurso "cansado de ver tanta podridão" de nossa classe média. Isso se reflete, por exemplo, no fato de o cinema ter aplaudido a cena em que o secretário de segurança pública do Rio é esmurrado por Nascimento. Tudo fica, portanto, muito simples: é só esmurrar e botar na cadeia o filho da puta do deputado, do vereador, do governador, do secretário, em suma, quem quer que seja o pária da vez, que as coisas se resolvem.

Mas o nosso mundo não é assim.

O "sistema", como o próprio filme sinaliza, se (re)produz apesar de seus membros morrerem, serem presos, whatever. Isso não se dá porque "cada um quer adiantar o seu lado", como diz Nascimento em uma determinada cena. O sistema se (re)produz porque ele é parte intrínseca de nossa própria sociedade, desempenhando, inclusive, um importante papel em seu funcionamento. Em suma, o próprio poder em nossa cidade (e, talvez, em nosso país) foi constituído de maneira a dar brechas para que aquele panorama apresentado no filme fosse construído, sendo um de seus órgãos.

Não há, nesse sentido, ninguém livre de culpa, e Padilha não teve coragem de dizer isso. Ao falar, por exemplo, do papel da imprensa no "sistema", Tropa de Elite 2 apenas resvalou no assunto. Será que isso tem a ver com o fato de o filme ser produzido pela Globofilmes? Talvez. Mas fato é que a narativa seria muito mais interessante se Nascimento virasse o dedo pro lado de fora da tela, causando o profundo desconforto que o espectador certamente merece, dizendo:

-Sabe de quem é a culpa dessa merda toda? A culpa é sua, meu caro. É você que acha que faz o suficiente, que "faz a sua parte" pagando religiosamente seus impostos, cumprindo todas as suas obrigações, quem dá sustentação ao sistema. O que você não percebe é que o "sistema" que você tanto critica é sustentado por você, ele se alimenta da legitimidade que você a ele concede, de sua muda obediência. o que você não percebe é que, provavelmente, você votou no corno que eu espanquei agora, e que, portanto, você é tão responsável por isso quanto ele.

Mas, ao invés disso, cap. Nascimento fornece a quem o assiste um momento de maravilhosa redenção, executando os socos que cada um acha que merece dar na cara do "político que não presta". Com isso, mais uma vez, o discurso político de nossos artistas não faz mais do que meramente reproduzir um tolo senso comum, concedendo principalmente à classe média carioca o deleite de ver reproduzido aquilo que ela está cansada de saber.