terça-feira, 29 de novembro de 2011

Sobre Belo Monte

Ou: qual é o Brasil que queremos?

Nos últimos meses, vêm se intensificando os debates que cercam um dos mais polêmicos projetos de engenharia da história do Brasil, a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. Com o avanço da discussão, vão se sofisticando os argumentos tanto dos que defendem o projeto quanto dos que o atacam, e mais pessoas vão se engajando no embate. Eu venho acompanhando a questão há algum tempo, e comecei a perceber sua importância, principalmente, quando passei a apreciar as posições do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (um dos principais nomes da militância anti-Belo Monte, um dos mais importantes antropólogos do mundo) sobre o assunto.

Por questões “ideológicas” (que Althusser me desculpe por utilizar o termo tão levianamente), eu tendo a ser contrário a qualquer empreendimento que venha a alterar radicalmente a vida de um conjunto de pessoas sem que tal empreendimento esteja ligado a uma melhoria real, direta e substancial dessas vidas. Além do mais, não costumo me deixar comover pelo fetichismo frio dos números: pouco me importa se 10 famílias serão deslocadas para a construção de uma via ou se milhares serão desalojadas para que uma determinada cidade faça papel de civilizada diante do resto do mundo. Na minha opinião, o que importa no fim das contas é que o projeto traga benefícios reais para todas as partes envolvidas.

Apesar desse meu pendor, resolvi acompanhar a argumentação daqueles que se colocam a favor da construção de Belo Monte. Evidentemente, encontrei um ou outro mau-caráter que diminuiu aqui e ali o número de pessoas afetadas pelo projeto, e um ou outro malandro que escondeu esse ou aquele efeito perverso da obra. Isso, porém, não me surpreende; afinal, em qualquer embate ligado a uma questão tão importante e estratégica haverá, em ambos os lados, grupos (que podem ser maiores ou menores) de pessoas dispostas a trocar os dados reais por aqueles que mais lhes convêm. Deixando de lado esse tipo de discurso, guardei para mim apenas as perspectivas que me pareceram legítimas, sinceras e objetivas.

E continuei sendo contra Belo Monte.

A maioria dos defensores e detratores da construção da usina apresentam números, dados sobre impactos ambientais e, principalmente, questões relativas à eficiência do empreendimento na produção de energia elétrica. Nesse último ponto, aliás, tive a leiga impressão de que o lado dos defensores tem argumentado um pouco melhor do que o lado dos detratores.

Entretanto, esse tipo de argumentação ligado a termos como “eficiência”, “número de pessoas afetadas reduzido”, “danos ambientais menores do que outros tipos de produção de energia” não me convence nem um pouco. Explico por quê.

Independentemente do fato de a usina produzir essa ou aquela quantidade de energia por ano, independentemente de Belo Monte ser uma hidrelétrica e, portanto, menos impactante em termos ambientais do que uma usina que queima combustível para produzir energia, há uma lógica absolutamente perversa que subjaz sua realização. Essa lógica perversa diz respeito a um modo de encarar e de produzir o mundo, em que pessoas historicamente destituídas de qualquer possibilidade de acesso a serviços ou de vantagens mínimas são completamente ignoradas na hora de traçar um determinado projeto. No Brasil, os povos indígenas são os mais claros e extremos exemplos – mas de forma alguma os únicos - da reificação dessa lógica: constantemente são deles exigidas mudanças radicais em seus modos de vida (isso quando eles não são encarados como simples empecilhos e são cruelmente exterminados) para que a marcha austera e impiedosa do progresso se realize - organizada do alto da prancheta dos engenheiros, economistas e burocratas “racionais”, os quais dizem sempre que estão fazendo o que é mais necessário e adequado.

Alguém talvez argumente que os benefícios de um empreendimento desse tamanho são mais relevantes do que seus impactos. Ao que eu pergunto: benefícios para quem? Será que, de fato, a vida da população como um todo será melhorada com a construção da usina? Ou será que uma imensa parte energia produzida por Belo Monte será, como uma imensa parte da energia produzida por tantas outras usinas pelo Brasil, utilizada nos altos fornos das multinacionais produtoras de alumínio (ou de qualquer outra coisa)?

Além disso: por que grupos historicamente esquecidos pelo Estado têm de sofrer para que a sociedade urbana continue com seus padrões insanos de consumo de energia elétrica? Afinal, todo mundo acha que certos segmentos da sociedade – que são sempre os mesmos: índios, negros pobres, etc., etc., etc. - são obrigados a se sacrificarem em prol do bem estar da Nação – leia-se: em prol do bem-estar das classes médias e altas; entretanto, ninguém está disposto a fazer qualquer tipo de esforço para diminuir um pouco o seu próprio consumo de energia (a não ser, evidentemente, que o valor da conta de luz cresça demais), a trocar o sistema elétrico ineficiente da própria casa, a pressionar o governo para que ele subsidie a compra, por particulares, de painéis de energia solar. Do mesmo modo, o setor industrial privado, consumidor de imensa parcela da produção de eletricidade no Brasil, não está nem um pouco disposto a investir no desenvolvimento de novas tecnologias energéticas e muito menos a adotar ele mesmo técnicas de produção de energia menos impactantes sócio-ambientalmente: como esse tipo de investimento demanda aplicação do lucro das empresas – essa entidade sagrada que, em nome dos santos acionistas, não pode nunca, em hipótese alguma, diminuir -, a opção mais fácil é pressionar o Estado para que ele próprio invista em infra-estrutura. Afinal, como bem percebeu Poulantzas, é para isto (entre outras coisas) que o Estado serve: para fazer aquelas coisas que o capitalista não quer fazer, mas que ele precisa que alguém faça.

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Após colocar minha opinião sobre a usina de Belo Monte, gostaria de discutir muito rapidamente algo um tanto mais “abstrato”.

A meu ver, junto com o crescimento da importância econômica e geopolítica do Brasil, veio um problema gigantesco: o problema de decidir os rumos de nosso crescimento, de nosso desenvolvimento.

Estamos crescendo? Sem dúvida, e, diga-se de passagem, “como nunca antes na história desse país” - como diria o maior presidente que a história desse país já viu. E um sintoma disso é o fato de já termos problemas de país desenvolvido: atraímos um número cada vez maior de imigrantes ilegais, que são utilizados de maneira ilícita e desumana como mão-obra escrava ou semi-escrava (ou são tratados como lixo nas nossas cidades de fronteira); já temos ocupações militares fora de nossas fronteiras cuja legitimidade é questionada pelas populações por ela afetadas; e já exportamos o ônus que o suprimento de nossas necessidades acarreta. Observe os Estado Unidos e a única coisa que muda é a escala em que essas coisas acontecem por lá.

Entretanto, como em outros momentos da vida humana, a questão não é unicamente de tamanho: devemos nos preocupar com a forma com que nos valemos de nosso tamanho e de nosso crescimento. É esta a escolha que se coloca: ou construiremos um país desigual que sacrifica, no altar dos deuses do capitalismo, a população menos favorecida; ou construiremos um Brasil que promove a prosperidade de todos, que investe em educação, saúde, saneamento, etc..

Seja no alto Xingu, seja no Rio de Janeiro olímpico, é essa escolha que está em jogo em cada projeto, em cada orçamento, em cada decisão. E eu acredito que já tenha passado da hora de as discussões ligadas a tais decisões serem colocadas em termos mais humanos.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Evangélicos e preconceitos

Hoje tratarei de um assunto que eu acho bastante polêmico. Esse meu achar, certamente, tem motivos subjetivos: pretendo falar de um preconceito para o qual eu próprio, por descuido ou por pura falta de tato mesmo, costumo escorregar.

Afirmemos logo de início o assunto do texto: tratarei aqui do preconceito de que, muitas vezes, são alvo as pessoas que fazem parte das chamadas religiões evangélicas – sobretudo as neopentecostais.

Antes de entrarmos na argumentação à qual pretendo conduzir, devo ser sincero para com meu leitor e explicar de onde digo o que digo: sou um ateu convicto, desde o momento em que comecei a refletir sobre mim mesmo e sobre o mundo que me cerca. Fui, porém, educado em meio a uma família mais ou menos católica – já que alguns elementos muito próximos são fervorosos praticantes dessa religião, enquanto outros tantos não dão muita bola pros assuntos de Deus. Além disso, diria que hoje sou uma pessoa avessa – tão avessa quanto me é possível ser - a qualquer doutrina dogmática e a qualquer tentativa de arrebanhamento do humano (li com muita atenção o Nietzsche, então não tinha como ser de outra forma).

Feito esse não tão breve preâmbulo, começo a falar o que quero falar.

Essa semana - mais precisamente hoje - tive acesso à seguinte informação: em termos religiosos, uns sessenta e tantos por cento da população brasileira se diz católica, uns vinte e tantos por cento se diz evangélica e os outros porcentos sobram para os ateus e praticantes de outras fés.

Obviamente, esses dados são crus pra cacete. Dizer apenas quem acredita em que – e de uma maneira tão genérica, que, por exemplo, não discrimina entre as inúmeras manifestações do protestantismo que têm lugar no Brasil – não dá, de forma alguma, uma visão clara das religiosidades praticadas em nosso país. Entretanto, mesmo tendo isso em vista, permiti a mim mesmo tirar algumas conclusões.

Primeiramente, gostaria de articular o percentual que (esdruxulamente, eu sei, mas to com preguiça de procurar os dados) apresentei com algumas, digamos, “tendências discursivas” que se colocam ao fazerem menção ao fenômeno neopentecostal. Por um lado, é notório o avanço do neopentecostalismo no Brasil. E, por outro lado, é igualmente evidente que a esmagadora maioria da população brasileira ainda é de fé católica.

Não entraremos, aqui, em questões teológicas, e nem tampouco faremos um esboço de sociologia da religião. O que eu quero chamar à atenção é um fato meio óbvio até: muito embora, como já disse, a maior parte da população ainda seja católica, quase todo o conservadorismo, ou se preferirem o “atraso” vem sendo, no discurso do senso comum, posto na conta dos evangélicos. Sendo assim, o próprio avanço do “fenômeno evangélico” é visto por muitos como um problema a ser combatido, como um monstro que vai crescendo e se estruturando para fundar um Brasil crente, obscurantista, conservador e ignorante – e que, no curto prazo, tende a entravar o desenvolvimento brasileiro por misturar política e religião.

Esse tipo de ponto de vista – o leitor deve concordar comigo – é comum. Piadas que atacam a “ignorância” dos evangélicos, que ridicularizam sua fé, que os tratam como títeres à mercê de vis manipuladores da fé alheia, são cada vez mais difundidas; por vezes, algumas pessoas identificam que a odienta Globo seria um mal menor, perto da Record do – também odiento – Bispo Macedo; e alguns intelectuais que se dizem não-conservadores também tendem a dizer que os evangélicos – e apenas eles – seriam responsáveis pelo entrave que se coloca diante da conquista de alguns direitos civis básicos (como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o aborto e a legalização das drogas).

Ora, é certo que há algum grau de verdade nisso tudo. Basta assistir na televisão os programas de alguns – não todos, deve-se frisar - segmentos das religiões evangélicas brasileiras para notar que grande parte delas veicula um discurso verdadeiramente obscurantista, desrespeitoso para com os adeptos de outra fé e/ou modo de vida, e que confundem o lugar da pregação religiosa. Entretanto, simultaneamente, eu penso: ainda há um grande contingente da população que pertence ao catolicismo; e, sendo assim, se “ser evangélico” é a variável que explica o conservadorismo brasileiro, como se explica o fato de a maior parte da população ser católica estar articulado a uma nação, a meu ver, crescentemente conservadora?

No meu modo ateu – e, portanto, nada imparcial - de entender as coisas, não há, em termos de tendência a “permitir” ou “aceitar” medidas mais “liberais”, muita diferença entre os evangélicos em geral e os católicos em geral – se fosse assim, não haveria tanta resistência por parte da sociedade em reconhecer alguns daqueles direitos civis básicos. Ao que parece, há na verdade um crescente e irrefletido preconceito (perdoem a tautologia) que se coloca entre as pessoas e uma leitura menos estigmatizante das religiões evangélicas.

Nesse sentido, percebo que, principalmente no Rio de Janeiro (estado onde as neopentecostais avançam a passos larguíssimos), alguns setores conservadores de classe média e alta relacionam os evangélicos aos pobres – ou, dizendo de outro modo, a representação que tais segmentos de classe têm dos evangélicos afirma que esses últimos são recrutados entre a população mais pobre; o que os torna, portanto, alvos de todos os preconceitos que possuem em relação aos pobres em geral. E assim ficam as coisas: como se conservadorismo, mistura de religião e política, ignorância política, fossem coisas que não dizem respeito às camadas medias e altas de nossa sociedade.

Minha opinião, para resumir, é que um preconceito relativo a origem sócio-econômica vem sendo cada vez mais transfigurado em um preconceito dirigido aos praticantes de uma certa fé. Esse preconceito tem alguma sustentação na realidade? Talvez, não sei dizer ao certo. Mas o que quero dizer é o seguinte: tem muita gente por aí achando que o problema são os outros, e acaba esquecendo de olhar para seus próprios valores.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Progresso e austeridade

Curioso é observar o quão próximas são às vezes idéias aparentemente contraditórias, como progresso e austeridade. Superficialmente, nada anuncia o parentesco de ambos os conceitos; entretanto, a verdade é que os dois representam – perdoem-me pelo lugar-comum - duas faces de uma mesma moeda.

Para desfazermos a ilusória diferença, devemos observar o contexto em que tais vocábulos são utilizados. Se progresso diz respeito, histórica e cotidianamente, a uma marcha à frente – sendo esse à frente, necessariamente, melhor do que aquilo que ficou para trás -, a outrora inocente austeridade tornou-se acompanhante recorrente da palavra "medida", formando assim a hoje mui pronunciada "medida de austeridade" - expressão que diz respeito a uma política econômica e social que (segundo dizem alguns) se faz necessária para que as nações mais fragilizadas pela atual crise do capitalismo não entrem em colapso.

Dito isso, o leitor deve estar a se perguntar: por que diabos progresso e austeridade seriam coisas semelhantes? Se o progresso – coisa boa, desejável – é a marcha à frente, a melhora, e as medidas de austeridade são as rígidas, sóbrias e racionais (porém necessárias) formas de combate à crise - coisa ruim, indesejável -, de que maneira tais coisas se aproximam?

Pois bem: é aqui que adentramos o ponto crucial da argumentação. Ao que me parece, há um princípio que atravessa tanto a exigência das medidas de austeridade quanto a marcha do progresso.

Para melhor explicar a idéia, analisemos as reais conseqüências do que é hoje entendido como progresso.

No Brasil, sempre houve – e ainda os há às pencas – aqueles que se denominam progressistas, e até governos, por aqui, se consideram e são alcunhados como tal. Mas, certamente, o progressismo brasileiro não é apenas um movimento de pessoas que andam para a frente – ou seja: não é definido pelo sentido abstrato, encontrado no dicionário, do termo progresso; ele é, antes de mais nada, um projeto político, social e econômico específico, e que tem e teve a intenção de fazer avançarem as forças produtivas, o consumo, a produção de bens de consumo industrializados, o aumento do PIB, etc.. Trocando em miúdos: o progresso, tal qual foi – e é – posto em prática em nosso país, é um progresso que se movimenta no terreno do modo de produção capitalista, desenvolvendo e aprofundando sua inserção por aqui.

O inconveniente do progresso, conforme é possível compreender se observamos a história de nosso país, é que a marcha adiante nunca se depara com um espaço vazio e homogêneo. Seus passos, para se realizarem, precisam remover inúmeros obstáculos; e ele é, para não perdermos a chance de uma boa metáfora, como que um desbravador de matas virgens e fechadas, que vai removendo à base de facão aquilo que se põe como problema. E aí está a chave para chegarmos à conclusão que desejamos: no mais das vezes, esses obstáculos são pessoas de carne e osso, homens, mulheres e crianças que atravessam o caminho dos empreendimentos progressistas. E, quando isso acontece... bem, pior para quem se contrapõe a tais empreendimentos.

Entretanto, apesar dos inúmeros conflitos gerados pela marcha do progresso, muitas são as vezes em que seus pequenos obstáculos não oferecem sequer a mais tímida resistência – e por que? Responderia eu que, entre (muitas) outras coisas, os obstáculos são seduzidos pelo progresso, convidados a dele participarem, sob a promessa de que, mais à frente, suas benesses poderão ser repartidas entre todos. Quem aí nunca ouviu a história do “primeiro, deve-se fazer o bolo crescer”...?

Muita gente falou isso, e tem mais gente ainda esperando até hoje a tal repartição do bolo. E justamente porque sempre entra em jogo o fator da crise, ou, mais precisamente, o agravamento das múltiplas contradições ativadas durante o desenvolvimento capetalista. Tomemos como exemplo a atual conjuntura: foram, grosso modo, as próprias formas de ganhar dinheiro inventadas nas décadas anteriores à presente que geraram a crise monumental que hoje se observa. Ou estou enganado? (pergunta retórica)

E aí, volta à cena nossa amiga, a austeridade – ou melhor, a medida de austeridade, já que o próprio progresso é considerado austero por muitos. Mais uma vez, diante da crise, exige-se de muitos um novo sacrifício, o qual é necessário para evitar o iminente colapso cataclísmico do mundo tal e qual conhecemos. Como disse alguém inteligente, concentram-se os lucros e socializam-se os danos – e fica sem o pão quem deu farinha ao bolo, simples assim. O momento da partilha, mítico e ainda inédito até aqui, é novamente adiado pela recessão, e deverá esperar mais algum tempo – o tempo, evidentemente, de estabilização e retorno ao crescimento econômico, ao progresso.

Caso o leitor não tenha percebido, estão já abraçados, austeridade e progresso. Ambos se aproximam por exigirem, obrigarem, o sacrifício de muitos – os muitos que são removidos de seus lares para a realização de um evento esportivo, os muitos que são desalojados para a instalação de uma, digamos, usina hidrelétrica, os muitos que perdem o direito a um serviço público de saúde e educação minimamente qualificado, os muitos que se vêem desempregados e, constantemente, atirados à miséria. Ambos se aproximam por corresponderem ao atendimento às demandas de uma minoria que avança pisando em cabeças e resolve seus problemas com oferendas de vidas alheias. São, conforme eu já disse, duas faces da mesma moeda.

P.S.1: sim, eu sei que tem um ato falho no meu texto. Não se preocupem: foi proposital.

P.S.2: sim, eu tenho mania de corrigir meus textos depois de publicá-los.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

A besta e sua caverna

Há uma lenda um pouco antiga que fala de uma besta em uma caverna. Dizem que a escuridão a engole hoje e a engolirá por toda a eternidade, e que há muito ela não é avistada por olhos mortais.

Contudo, parece difícil que tal relato seja verdadeiro. Segundo me parece, é muito mais provável que ninguém seja capaz de enxergar a besta não por sua distância de tudo, mas pelo fato de ela estar próxima demais e grande demais. Creio, aliás, que tudo quanto existe está nas dobras de seu corpo, sob suas unhas hediondas, entre seus dedos longos que alcançam tudo.

De qualquer modo, esteja essa besta isolada ou próxima, ela está. Descrevê-la é uma prática há muito esquecida, posto que ela não foi vista em alguns séculos; tudo o que se tem hoje sobre ela são murmúrios antigos, palavras ditas em voz baixa e reproduzidas num tom ainda mais baixo.

Diz-se que a criatura tem longos braços finos, com pouca carne e alguma pele – pele essa que pende, amolecida e morta, alguns centímetros por sob a estrutura óssea do braço. Acredita-se que em tempos mais antigos, em que nada nem ninguém havia ainda encontrado a caverna em que vive a besta, ela se alimentava de pequenos vermes, finos como lombrigas, que rastejavam ao seu redor. Tateando no escuro, devorava os minúsculos seres que muito mal a sustentavam; e, dos restos de sua mastigação, se alimentavam os vermes sobreviventes.

Sua boca, larga e longa, cheia de dentes pontiagudos perfilados, lembra muito a boca de um crocodilo. Seu hálito nauseabundo anuncia que os dentes, apesar de eficientes, permitem que muito do que a besta consome permaneça por longos períodos de tempo acumulado nas pequenas frestas do interior da boca – o que talvez seja o pior destino possível a qualquer coisa que exista.

O único olho da besta, olho sem pálpebra, enxerga mal e não serve para muita coisa – apenas, talvez, para anunciar sua eterna vigília. O que lhe permite a sobrevivência é, de fato, sua excepcional capacidade de distinguir coisas com o tatear. Suas mãos nervosas e eficientes, sempre ávidas por encontrar qualquer coisa que possa ser digerida, destroem muito do que tocam, posto que avançam com força demasiada; entretanto, mesmo em meio aos escombros que produzem, são capazes de colher aquilo que lhes interessa.

Possui também um pescoço fino, o qual vive caído para a frente e só se levanta com muito esforço – certamente por efeito do peso da boca massiva da criatura e de sua formidável mandíbula. O corpo que sustenta essa monumental e bizarra cabeça, por sua vez, não é algo lá muito terrível de se olhar – lembra, aliás, muito do que são os homens que passam fome: consiste em um peito magro, ossudo, encarquilhado, sob o qual está uma barriga relativamente volumosa.

A aparente míngua da besta, contudo, não condiz com a realidade. Apesar de, em tempos passados, a fome ter sido quase mortal para ela, fato é que hoje sua caverna se encontra em franco progresso. Desde que o primeiro ser vivo – além, é claro, dos vermes – foi por ela encontrado e deglutido, seu paladar se refinou e a variedade de sua alimentação aumentou. Muitas coisas vivas passaram a adentrar espontaneamente a caverna, de início por pura e simples inocência, e mais tarde sob a promessa de que a escuridão em que vive a besta era a mais gratificante das possibilidades. Assim sendo, foram deixados em paz os insossos e nojentos vermes; ficaram eles, portanto, livres do instinto predatório e da natureza insaciável da besta, passando a viver também de restos mais ricos e variados – de modo que se multiplicaram e engordaram tanto que cobriram o corpo da besta, a qual está sempre sentada com as pernas cruzadas, até a região de sua cintura.

Discordo do mito, como já disse, porque penso que a besta não mais se alimenta daquilo que vem de fora da caverna. Passado tanto tempo, e considerando-se a voracidade que a criatura apresenta, não é possível, não é lógico, que coisas ainda existam fora de seu alcance. Daí minha conclusão: a meu ver, tudo o que era antes do pecado original – o da entrada na caverna – hoje existe aos restos, aos pedaços miúdos; está em vãos, em pequeníssimos fossos no próprio corpo da besta, entre seus dentes, em seus orifícios. Seu organismo, acostumado à breve riqueza, já reclama presas novas, apesar de se regozijar com os ainda abundantes restos não consumidos pelos vermes. Imagino que, dentro de pouco tempo, os próprios vermes voltarão a ser consumidos pela besta, voltarão a diminuir, emagrecer, a viver na miséria – até que, no mundo fora da caverna, surjam miraculosamente novas e inocentes criaturas que se disponham a adentrar a escuridão.

domingo, 10 de julho de 2011

Gênese

Foi justamente ali a primeira morada do homem. Ali: algo mais incerto do que o ato de apontar no horizonte algum lugar, uma floresta densa em que tudo era tudo confundindo-se consigo mesmo.

Ali dançavam as árvores antes de serem árvores, ao som e ao sabor de um vento que era a música que a nada aludia - simples som bruto, que levava consigo o sussurro das coisas vivas e mortas, das coisas animadas e inanimadas.

Foi ali que Deus – antes, obviamente, de ser batizado – pariu dentro de si a sua obra mais mal-acabada, imperfeita e incapaz. Foi ali que Deus construiu a corrupção de si mesmo, a desarticulação do tudo que era e que não achava que poderia deixar de ser.

Levando ao limite sua própria capacidade criativa, quis Deus fazer alguma coisa que não fosse como o resto – um pequeno e frágil brinquedo, incapaz de ser tudo ao mesmo tempo. Mas o brinquedo não respondeu logo aos seus desígnios, e foi considerado uma espécie de estorvo inútil. Era pura e simplesmente uma coisa muda, um monte de carne que não aparentava diferenciar-se.

Temeroso e orgulhoso, Deus não aceitou essa afronta à sua onipotência, e logo se pôs novamente a construir algo que não fosse tudo. Cá e lá fez uns ajustes no projeto inicial, mas a princípio ficou desapontado consigo - a coisa nova novamente o decepcionou.

Deu-se, porém, que as duas frustrantes invenções de Deus se puseram lado a lado um dia. Olharam-se por alguns instantes, até o momento em que a invenção mais nova tomou a atitude que modificou o destino do Universo: ao ver uma criatura longa e delgada que rastejava pelo chão, olhou para seu colega, arregalou os olhos e apontou. A invenção mais velha, assustada, percebeu que a coisa apontada era de uma cor diferente da sua; além disso não tinha pernas, não tinha uma cabeça redonda, mas sim uma achatada e em forma de seta. E, a partir daí, ambos observaram o redor e perceberam a esmagadora diferença eles e tudo o que não era eles – e até perceberam, enfim, o imenso abismo de diferenças que havia entre os dois, os quais não eram de forma alguma iguais.

Foi nesse momento, único e impossível de ser reproduzido, que a palavra tudo deixou de fazer sentido e passou a ser apenas uma palavra. Foi nesse momento que Deus foi batizado, e entendido como a coisa criadora de toda aquela indestrutível diversidade. Foi Deus, por fim, cultuado justamente por ter dado àquelas duas invenções – as quais chamaram-se a si mesmas pelos nomes de “Homem” e “Mulher” – a matéria à qual a criatividade seria capaz de dar tantos nomes quanto quisesse, fragmentando tudo na fé de que o tudo poderia ser encontrado no mais ínfimo pedaço de todas as coisas. E assim o Deus nomeado deixou de existir, posto que já era algo diferente de si mesmo.

sábado, 2 de julho de 2011

Sobre universidades e seus "níveis"

Hoje, só pra variar um pouco, trataremos de um assunto polêmico: a recente adoção integral, por parte da Universidade Federal do Rio de Janeiro, do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) como única prova a ser realizada por aqueles que pretendem ingressar nos cursos daquela universidade (recomendo, para que haja um bom entendimento do presente texto, que o link acima seja lido).

A princípio, uma nota de sinceridade deve ser feita por mim: eu não sou, nem de longe, um especialista no assunto “educação”. Sendo assim, meu objetivo aqui se prende aos meus limites: não vou entrar – ou entrarei tanto quanto me for possível – numa discussão sobre a legitimidade, a eficiência ou o método do ENEM enquanto forma de avaliação da qualidade do ensino no Brasil e como forma de acesso às vagas em universidades. Ao invés disso. buscarei discutir com algumas formulações que tenho ouvido e lido por aí, as quais atacam a medida da UFRJ.

Ao notar a indignação de algumas pessoas quanto à questão, preocupei-me ao perceber que na maioria dos casos (mas não em todos, evidentemente)lançava-se mão de argumentos excessivamente elitistas para a defesa dos pontos de vista: ao que parece, a adoção do ENEM estaria aí para “diminuir o nível” da Universidade, posto que esse exame seria mais “fácil” do que era o tradicional vestibular da UFRJ.

Particularmente, não vejo o ENEM como uma prova muito adequada para a avaliação dos estudantes: ele realmente é excessivamente longo, constituindo-se mais em teste de resistência do que em uma mensuração de conhecimento e de habilidades cognitivas. Isso, porém, é secundário para a nossa argumentação. Nosso ponto, aqui, diz mais respeito ao fato de que muita gente – gente capaz, inteligente (o que até assusta mais) – acha que o ENEM é pouco “seletivo”, e coloca alunos “bons” – leia-se: alunos oriundos de escolas em sua maioria caras e de camadas mais abastadas de nossa sociedade – mais ou menos em pé de igualdade com alunos “ruins” – ou seja, alunos oriundos de escolas públicas, de escolas particulares mais baratas e de camadas menos abastadas de nossa sociedade. Em suma: quase todo mundo entende (como eu) que a adoção do ENEM é um tipo de ferramenta de inclusão de estudantes pobres e/ou vindos de escolas públicas em cursos de nível superior, vendo, porém (diferentemente de mim), essa inclusão como algo que potencialmente diminuirá o “nível” dos cursos de graduação.

Na minha humilde opinião, esse tipo de argumento é furado por uma série de razões. Em primeiro lugar, até onde eu sei as universidades que adotaram o sistema de cotas, por exemplo – o qual, supostamente, também diminuiriam o “nível” dos cursos universitários por ser um sistema inclusivo e "pouco meritocrático" – perceberam que os alunos que alcançam o ensino superior por esse meio possuem um desempenho tão bom quanto seus colegas que prestaram o vestibular tradicional. Portanto, tendo sido derrubado pelos fatos esse senso comum grosseiro e extremamente elitista, fica a seguinte questão: qual é, afinal, o problema de se excluir o vestibular “tradicional” e se estabelecer uma avaliação que coloque em pé de (suposta) igualdade tanto os estudantes menos dotados de vantagens materiais e aqueles alunos que têm dinheiro para serem adestrados pelos cursinhos pré-vestibulares?

Feita de maneira breve essa discussão,ainda ficam alguns problemas. O mais importante deles está ligado ao argumento de que “são os alunos que fazem a universidade”, e que portanto alunos de escolas públicas que são pobres puxariam para baixo as universidades. À parte a já denunciada natureza sofismática do argumento, ele possui um outro erro: ao que parece, o que constrói o sistema educacional e sua qualidade é o “esforço” individual dos alunos. Em algum nível, isso até é verdade. Entretanto, se entendemos e concordamos um pouco com Bourdieu (que, grosso modo, afirma que as desigualdades sócio-econômicas se reproduzem dentro do sistema educacional), também é verdade que a qualidade do desempenho escolar/universitário é infinitamente mais difícil para pessoas mais pobres – e, assim, o pensamento meritocrático vulgar cai por terra, já que não estamos falando de sujeitos que partem de lugares iguais e que dispõem de tempo e oportunidades semelhantes.

Sendo assim, se queremos um sistema educacional mais igualitário, devemos sim apoiar a inclusão de estudantes oriundos de camadas mais pobres no sistema universitário – afinal, o mérito é uma coisa que, na maioria dos casos, não passa de uma falácia elitista. Porém, isso por si só não basta: se não são dadas aos alunos condições materiais para que continuem seus estudos, o mesmo sistema perverso acaba se reproduzindo, acontecendo, por exemplo (como já acontece), o número absurdo de evasão que observamos na maioria dos cursos de graduação. E se, ao mesmo tempo – ou não – queremos um sistema universitário de “nível elevado”, não devemos nos dirigir contra os estudantes mais pobres como se eles fossem párias responsáveis pela decadência da universidade. Ao invés de concentrarmos nossa atenção contra o método de inclusão de novos alunos, deveríamos garantir que nossos professores fossem bem pagos e qualificados, que nossos laboratórios fossem bem equipados, que a estrutura física da universidade possibilitasse uma melhor formação. Deveríamos, por exemplo, protestar contra os cortes feitos no orçamento do Ministério da Educação – algo contra o que, aliás, pouca gente parece se indignar – ao invés de acharmos que pobre não tem direito de se formar no ensino superior.

P.S.: aqui, encontram-se dados relativos à política de cotas da UERJ. Dá uma olhada, que mesmo na crueza dos números já ficam óbvias algumas coisas que estão mais ou menos presentes no texto acima.

P.S.2: Aqui, uma crítica ácida, competente e precisa direcionada ao discurso preconceituoso e elitista das pessoas "esclarecidas" que se posicionaram contra essa óbvia profanação da sacralidade institucional da UFRJ.