sexta-feira, 21 de março de 2008

Tragicomediando

Atendia quando o povo lhe chamava por Álvaro, se não me trai a memória. Foi-me avizinhado às pressas, feito fugitivo. Parecia uma lagartixa: andava tão rente às paredes que fugia ao sol do meio-dia.

Dele nada foi dito nem desdito; sujeito muito reservado, passava tão desapercebido que era alheio até a olho e ouvido de tricoteira. Convenientemente, nada tinha de especial e enquanto pode escapou de coçar as orelhas.

Mas sempre chega o dia em que o homem reencontra seu passado.

Eis que, de repente, Álvaro foi flagrado ainda mais esquivo, e só deixava o abrigo quando diante de questões de morte. Empalideceu, quase sumiu; diziam alguns que seu retiro condizia com a chegada de certa família vinda, como ele, do interior.

A gente das redondezas, simpaticamente diabólica ou diabolicamente simpática, não tardou em estreitar laços com a tal família. Parecia que a todos interessavam as origens do fantasma Álvaro; sendo assim, foram exigidas respostas indiscretas sobre a vida anterior dele. Um singelo pagamento pelas tortas e biscoitos de boas vindas oferecidos aos novos contribuintes do IPTU de nossa cidade.

Respostas estas que foram dadas sem pudor algum; afinal, os cofres das pessoas não têm lugar para segredos dos outros.

Foi um escândalo. As moças mais sensíveis desmaiaram, enquanto os homens mais insensíveis gargalharam. Já meio ciente da própria situação, Álvaro não remou contra a enxurrada de escárnios maldosos que o atingiram. Evanesceu, simplesmente. Ninguém mais o viu por um bom tempo, o que causou certa dose de decepção em todos. Qual é a graça em fazer graça de coisa alguma?

Provocaram-no. Picharam seu muro; nada. Gritaram nomes feios à sua porta; ainda nada. Desesperado, o povo quase entrou em colapso; e persistiu nada. Até que Álvaro, enfim, deu as caras. Não do jeito que todos queriam, de fato. Amanheceu na ponta d’uma corda velha , roxo e com as feições deformadas. Mais enforcado que Judas em sábado de aleluia.

Não foi enterrado, pois deu cabo de si mesmo. Cremado, o corpo de Álvaro espalhou-se no vento. Nós, moradores desta cidade, jamais nos culparemos por tamanha desgraça. Cada um faz com a própria vida o que quer. Mas nos entristeceremos, sim, toda vez que meu pobre vizinho for mencionado. Sua tragédia não foi completamente representada; era pra terminar com ares de comédia.