sexta-feira, 7 de setembro de 2012

história

Mal surgia a espécie humana na África e, inquieta, se queria deslocar para a Europa da era glacial. Partiu, e ao chegar onde desejava não encontrou a terra inóspita que provavelmente esperava; tinha diante de si tribos e mais tribos de homúnculos primitivos e peludos, há muito separados do homo sapiens pela evolução. A princípio houve confusão, posto que ambos os grupos não sabiam muito bem o que achar um do outro. Evitaram-se, mas a paz tensa pouco durou: logo fez-se a guerra entre as duas espécies, e a expansão humana ampliou suas fronteiras até eliminar o adversário.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

O perigoso advento da babaquice

Não creio que seja problemático o fato de existirem babacas. Tampouco acredito que lhes deva ser vedado o direito da expressão pública de suas babaquices – afinal, diz-se que faz parte da essência mesma do ser-babaca o desejo incontrolável de despejar suas merdas no mundo. E iria eu mais longe: estou convicto de que uma possível interdição institucionalizada dirigida à babaquice consistiria em grave ataque aos direitos humanos mais fundamentais, posto que, conforme expressam cuidadosos estudos, recalcar babaquice pode gerar graves enfermidades - físicas e mentais - no babaca. O que me chama a atenção, o que realmente me preocupa, é que a babaquice vem sofrendo um alarmante processo de desbabaquização: se antigamente ela era ouvida com uma irritada condescendência por parte do público não-babaca, os últimos anos vêm registrando o crescimento de vastos grupos que se constituem ao redor de certos babacas - grupos esses compostos por pessoas que, cada vez mais, tendem à reprodução instantânea e epidêmica da babaquice da vez.

terça-feira, 6 de março de 2012

Domingos ensolarados

Para narrar o momento em que me tornei ateu, não preciso mencionar o dia em que tive acesso aos elevados conhecimentos da astrofísica, da biologia, da química. Devo dizer, aliás, que nenhum desses temas me é familiar até hoje.

Também não contarei, aqui, as peripécias de minha sabedoria prematura: não decidi viver sem deuses porque desde cedo me mostrei uma criatura brilhante e desconfiada, nascida com o questionar inscrito nos genes.

O que eu vou dizer é que meu ateísmo brotou dos domingos de manhã, no finzinho da minha infância. Recordo-me até hoje, com relativa clareza, do vestir-me com a roupa de ir à missa (nem muito arrumada, nem muito feia) no raiar dos dias santos. Lembro também da sensação ruim de perder belos sóis para ir à igreja, pra ouvir um padre que a família me ensinara a respeitar – muito embora eu não fizesse (e ainda não faça) muita ideia do que ele falava.

O estalo, por assim dizer, não foi exatamente nesse momento. Na verdade mesmo, “ateu” era coisa que sequer fazia parte do meu palavreado, até porque não costumam ensinar pra gente que dá pra viver se fé. A coisa se desenvolveu um pouco mais tarde pra mim, no meio da adolescência: além de meus pais nunca terem sido pessoas muito presentes em rituais religiosos, eu tive por essa época contato com a filosofia do Nietzsche. Eu li e reli esse respeitável senhor, até que notei algo que eu já havia percebido sem perceber: esse negócio de fé tende mesmo a roubar da gente a manhã do domingo ensolarado, a nos furtar o futebol, a nos exigir o sacrifício daquilo que nos apraz. Por que fazer isso, pensei eu? Por não encontrar resposta a essa indagação, aqui estou.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

O Leopardo de Visconti: uma lição para as ciências sociais

Não é segredo para ninguém que o campo das ciências sociais é atravessado por polêmicas que o acompanham desde o seu surgimento. A maioria dessas polêmicas tende a alcançar níveis cada vez maiores de complexidade teórica: se, por um lado, novas perspectivas e até mesmo revisões da literatura existente na área aumentam progressivamente de quantidade, por outro os paradigmas nunca se substituem de fato – e o que acontece de fato é a riquíssima coexistência de infindáveis correntes teóricas que iluminam com múltiplas cores o mundo social. Se isso é a maior riqueza das ciências sociais, devemos considerar também seus possíveis efeitos perversos. E o principal deles, a meu ver, origina-se de uma inexplicável tendência dos acadêmicos da área, que costumam encaixar todos os modos de pensamento em esquemas simples de oposição - como se certas correntes fossem absolutamente irreconciliáveis e afastadas umas entre as outras.

Uma dessas falsas oposições encontra-se na suposta escolha que se deve fazer entre uma leitura estruturalista ou outra individualista do mundo social. Até certo momento tudo indicava isto: que o cientista social deveria se situar ou ao lado dos que têm o agente, sua racionalidade intrínseca e sua interação com outros agentes semelhantes como ponto de partida analítico, ou ele se situaria ao lado daqueles que acreditam no primado das estruturas sobre os agentes – tomando as sociedades como sistemas dotados de regras que formatariam, dessa ou daquela maneira, a ação cotidiana. Mais tarde, ainda surgiram autores que buscaram introduzir uma terceira via de interpretação do universo humano, situando-se em algum ponto entre individualismo metodológico e estruturalismo. Com isso, geraram novos pontos de vista que foram polemizados e tragados pela dinâmica peculiar das ciências humanas, sendo em certos momentos acusados por pertencerem a um ou outro lado da oposição pressuposta ou de terem constituído a síntese de maneira equivocada.

A meu ver, tanto aqueles situados nos pólos da oposição quanto os conciliadores estão errados em suas posturas. Os primeiros se enganam por apostarem em uma oposição que não me parece verdadeira, e os demais se enganam pelo mesmo motivo: em sua tentativa conciliadora, têm como pressuposta a possibilidade de se situarem em uma falsa ligação.

A denúncia da falsa oposição surge, segundo me parece, de um lugar um tanto quanto insuspeito: a arte – que apresenta a estranha característica de se colocar, muitas vezes, entre a subjetividade e a objetividade, entre a expressão do lado mais íntimo do ser e a estrutura. Principalmente no cinema e na literatura, artistas conseguiram encontrar um ponto em que estrutura e agente se encontram, em narrativas ricas que abordam múltiplos aspectos da existência.

O filme O Leopardo, do fantástico diretor italiano Lucchino Visconti (a meu ver, o melhor cineasta que já existiu) demonstra claramente essa possibilidade alcançada pela arte. Visconti foi capaz de descrever, de maneira primorosa, uma situação complexa em seu duplo aspecto: de um lado, mostra o colapso estrutural de toda uma sociedade, de todo um modo de estar no mundo; ao mesmo tempo, é capaz de descrever essa mudança de uma forma extremamente sensível subjetiva, demonstrando as mudanças de mentalidades e valores que deram sustentação ao ostracismo das nobrezas européias. A narrativa, em momento algum, cede à preguiça de escolher um dos dois vieses: ela caminha em uma linha tênue, na qual o espectador é capaz de apreciar ambos os lados da mesma experiência social.

Imagino ser possível que os cientistas sociais atinjam um nível de descrição semelhante, desde que abandonem a falsa oposição da qual falei. Não farão isso, certamente, construindo um lugar teórico normativo, supostamente situado entre dois pólos contrários: ao procederem assim, apenas produzirão novos construtos passíveis de serem encaixados em novas correlações enganosas. A postura do investigador social deve ser próxima, portanto, à de Visconti: ele deve estar ciente que sua obra é uma narrativa referente ao mundo real, e que, portanto, deve abranger uma pequena medida da complexidade dele. Deve, portanto, construir seu trabalho de forma delicada e cuidadosa, inserindo aqui e ali pinceladas da experiência coletiva e da experiência individual. Isso certamente seria difícil, na medida em que exigiria do pesquisador uma sensibilidade adquirida apenas com muito treino. A sorte, porém, é que em momento algum alguém disse que estudar ciências sociais seria fácil.