quinta-feira, 27 de junho de 2013

Manifestações no Brasil: um breve balanço

O mês de junho de 2013 certamente já está entre os momentos mais importantes da história política brasileira. Pensando de maneira rápida, não consigo me lembrar de nenhum momento em que o país tenha sido palco de manifestações tão grandes e espontâneas; o único paralelo que sou capaz de traçar é com o contexto imediatamente anterior ao golpe de Estado que os militares e uma parte da elite econômica nacional executaram em 1964. Diga-se de passagem, considero esse paralelo extremamente importante: embora haja entre os dois períodos muitas diferenças em termos de conjuntura econômica e política, é preciso ter em mente que as classes dominantes, quando veem ameaçados sua supremacia e seus interesses imediatos, prescindem da democracia com uma facilidade inacreditável. A verdade, contudo, é que nada parece indicar a possibilidade real de um ataque imediato à democracia formal no Brasil – embora os valores democráticos estejam constantemente postos em xeque pela ação absurda, inconstitucional e injustificável das polícias militares (essas instituições totalmente anacrônicas e inadequadas para qualquer nação que se queira democrática) em todo o país, que não têm o menor pudor de utilizar justificativas esdrúxulas para coibir o direito constitucionalmente garantido da livre manifestação.

A meu ver, os sentidos de todos esses movimentos ainda se encontram em franca disputa, e eu destacaria dois de seus eixos que considero centrais: 1) a disputa entre as diferentes narrativas que tangenciam esse momento especial e extremamente complexo que vive o Brasil e 2) a disputa pelo direcionamento desse imenso fluxo de energia que está sendo depositado na sociedade brasileira. É obviamente difícil prever quem ou o que sairá vitorioso de todo esse processo, mas já é possível notar que setores importantes ligados à direita organizada – como as grandes empresas de comunicação – já desistiram de lutar contra os movimentos e adotaram a estratégia da construção de uma narrativa hegemônica dos protestos.

Uma consequência importante dos protestos recentes foi a resposta dos atores políticos ao momento de crise. Inicialmente, a maior parte deles limitou-se a criminalizar e a desconsiderar a relevância dos movimentos, condenando-os ora pelo “vandalismo”, ora pela suposta puerilidade de suas pautas (lembremo-nos como foram tratadas pelos prefeitos do Rio e de São Paulo as primeiras passeatas contra o aumento das tarifas de ônibus). Essa criminalização aberta das manifestações deu origem, por sua vez, ao evento que a meu ver deu às manifestações a proporção gigantesca que elas tomaram nos últimos dias: a ação brutal e injustificada da polícia paulista, que sob as ordens do governador Geraldo Alckmin atacou a esmo qualquer um que se parecesse com um manifestante no dia 18 de junho, dando tiros de bala de borracha no rosto de jornalistas e atirando gás lacrimogênio dentro de apartamentos em que pessoas filmavam ou acompanhava a situação caótica. Esse claro desafio a todos os preceitos básicos da democracia revoltou a população em todo o Brasil e alterou a cobertura da imprensa: jornais que até dias antes publicavam editoriais pedindo que as autoridades removessem energicamente os manifestantes da rua passaram a defender, à sua maneira, a legitimidade dos protestos.

A partir de então tais protestos tornaram-se mobilizações de massa, que levaram milhões de pessoas às ruas. A repressão policial continuou – e atingiu seu auge nos momentos de terror que a PM do Rio causou após a manifestação do dia 20 de junho, em que pessoas foram aleatoriamente perseguidas e agredidas no Centro da capital fluminense -, mas o discurso das autoridades mudou: embora governadores como Sérgio Cabral ainda ordenassem o uso da violência para dispersar multidões e o próprio governo federal tivesse oferecido a força nacional de segurança para reprimir os protestos, as falas das figuras públicas passaram a ser mais cautelosas, reconhecendo – pelo menos no plano da retórica oficial – o direito de livre expressão e a legitimidade de muitas pautas de reivindicação. Tais pautas, entretanto, perderam a relativa especificidade que tinham nas primeiras passeatas convocadas pelo Movimento Passe Livre – cujas principais bandeiras eram a anulação do aumento das tarifas de transporte e a questão mais ampla da mobilidade urbana – e passaram a englobar preocupações difusas e genéricas, relativas a temas como corrupção, má utilização de recursos públicos, qualidade do sistema educacional, etc. Nesse processo, a esquerda organizada foi em muitos casos saindo do centro dos movimentos, sendo recorrentemente hostilizada por pessoas “apartidárias”. Esse apartidarismo (ou anti-partidarismo), por sua vez, refletia tanto um sentimento relativamente brando e mais ou menos generalizado de desconfiança com relação às formas tradicionais de representação política quanto uma crescente inserção dos grupos organizados de extrema-direita nas manifestações.

Hoje (dia 28 de junho), embora ainda aconteçam diversas passeatas e a polícia continue com sua atuação extremamente violenta, talvez já seja possível vislumbrar o início do fim do movimento iniciado em junho – ou, pelo menos, o fim de uma fase desse movimento. Os políticos começaram a mostrar serviço, e muitas pessoas parecem satisfeitas com os rumos que tudo está tomando: a presidenta Dilma Rousseff anunciou um conjunto de pactos que fez com os governadores, com o objetivo de melhorar a qualidade dos serviços públicos; além disso, encampou a luta pela reforma política (que, justiça seja feita, tanto a militância quanto muitos parlamentares do Partido dos Trabalhadores já vinham tentando emplacar a algum tempo) e pelo direcionamento dos royalties do petróleo para a educação pública. Já a câmara dos deputados rejeitou a famigerada PEC 37 (algo que, diga-se de passagem, não foi aprovado por uma grande parte dos juristas brasileiros); projetos de lei e de emendas constitucionais que estavam engavetados há algum tempo foram finalmente votados; e alguns parlamentares fizeram bons discursos de mea culpa e de avaliação do papel do Legislativo na política nacional. Todos esses acontecimentos apontam para o fato de que é bem improvável que os eventos de junho de 2013 não tenham reverberações relevantes, pelo menos na esfera institucional.

Entretanto, mesmo em um momento tão prematuro, faz-se necessário avaliar os sentidos das consequências que os protestos que tomaram conta do país geraram. É preciso observar se estamos ou não diante de um processo de avanço da democracia; é preciso analisar criticamente a conjuntura apresentada. Para isso, faz-se necessária a avaliação das causas que levaram aos protestos de Junho, para que então seja possível avaliar em que medida as políticas aplicadas podem ou não ser efetivas com relação aos fins a que se propõem.

Em primeiro lugar, acredito que ainda é cedo para que se realizem observações sociológicas mais profundas. Desse modo, creio que ainda não é possível avaliar o que os protestos das últimas semanas representam, por exemplo, para a luta de classes ou para a distribuição do poder na sociedade brasileira. Contudo, é bem evidente que, num plano mais superficial, essas manifestações são o sintoma mais evidente de uma crise institucional importante que vem se desenvolvendo no Brasil há algum tempo. Conforme já foi dito, grande parte da população desconfia muito das esferas tradicionais de representação política, e muitas das organizações existentes – sindicatos, partidos, etc. – descolaram-se demais do dia-a-dia daqueles que pretensamente representam. A transparência pública é algo praticamente inexistente no Brasil, e não somente no que diz respeito aos gastos públicos e à corrupção: decisões políticas que impactam diretamente na vida de milhões de pessoas são tomadas dentro de gabinetes, e o poder Legislativo em muitos casos serve apenas para referendar políticas predeterminadas produzidas pelo Executivo. A obsessão generalizada com o tema da corrupção, aliás, tem muito a ver com isso: como muitos dos pactos são feitos às escuras – por diversas vezes na fronteira confusa entre o legal e o ilegal, o legítimo e o ilegítimo -, o cidadão está sempre desconfiado de toda e qualquer ação que venha da esfera política. Nesse caso, o segredo favorece a imaginação, que por sua vez alimenta a fantasia da safadeza generalizada (fantasia essa que, convenhamos, não deve ser de todo falsa).

Segundo me parece, a maior parte dos políticos percebeu que é aí que está o problema, e que esse é o caráter geral do clamor das ruas. A ideia da reforma política aparenta vir dessa constatação, bem como o pacto firmado em favor da qualidade dos serviços públicos. Mas mesmo partindo do ingênuo pressuposto de que nossos representantes eleitos resolveram, de repente e finalmente, favorecer o crescimento da participação popular na vida pública brasileira, é preciso ter muita cautela: nada garante que as medidas até aqui apresentadas terão as consequências previstas e prometidas por seus proponentes, e nada garante que elas auxiliarão o avanço real da democracia no país. Acredito que, independentemente das propostas de reforma que serão efetivamente dispostas diante do eleitor, deve-se reconhecer a priori a limitação intrínseca das mesmas. Trocando em miúdos: a reforma política não deve ser apresentada como uma panaceia, pois se acontecer de outro modo é extremamente provável que a população se decepcione com os resultados obtidos e, consequentemente, acabe criando desconfianças quanto à democracia como um todo. Além disso, seria muito mais proveitoso se os debates em torno do plebiscito fossem realizados da forma mais horizontal possível, permitindo que as pessoas comuns discutam em pé de igualdade os caminhos possíveis. E, por fim, creio que seria muito interessante se o Brasil iniciasse para já uma grande campanha de conscientização popular, mostrando as possibilidade que a Constituição de 88 abre para a participação política e para o controle da máquina pública (e eles são muitos, embora não sejam ainda suficientes), permitindo que essas possibilidades sejam exploradas – ampliando-se assim o poder decisório do povo no que diz respeito a questões que lhe afetam diretamente.

terça-feira, 11 de junho de 2013

Transporte coletivo

A entrada das estações de nosso sistema de transporte consiste em um buraco no chão, e para descer até o fundo é possível escolher entre uma escada e um escorregador de aço muito liso. A escada é a opção mais cansativa, obrigando as pessoas a caminharem por muitos e muitos metros. O escorregador é bem mais rápido, porém um pouco mais arriscado, deve-se admitir: muitas vezes as redes de contenção que devem interromper a trajetória dos passageiros no final da descida não estão adequadamente colocadas, e alguns acabam se estatelando contra a parede lá embaixo. A manutenção das redes e a limpeza das paredes com as quais as pessoas se chocam é feita regularmente; contudo, tristes acidentes são possíveis e por vezes quem se dirige à plataforma vê as marcas de sangue do último desafortunado. De qualquer modo, os administradores do transporte felizmente têm o bom-senso de indenizar as famílias das vítimas sem uma reclamação sequer, e tal gesto humanitário é tão rotineiro que as autoridades responsáveis são poupadas de preocupações com esse assunto.

Cada estação possui formato circular, contando com seis entradas equidistantes. Entre uma entrada e outra, vinte guichês são oferecidos aos clientes para que eles possam comprar seus bilhetes a um preço proporcional à reconhecida qualidade do produto oferecido. Inicialmente, todos os guichês eram de livre utilização, e cada passageiro decidia em qual fila entrar. Contudo, a sabedoria dos administradores de nosso transporte levou-os a oferecer também um conjunto de serviços em torno das filas - o que tornou a espera significativamente mais agradável: o passageiro pode adquirir um pacote que lhe permite ter acesso a um setor específico para seu perfil sócio-econômico, com vantagens e mimos adequados às suas necessidades e desejos.

Nos setores destinados a quem adquire os dois pacotes básicos de serviços, são oferecidos paz e silêncio. Aplica-se um procedimento simples que visa impedir o cliente de levantar muito a voz ou realizar movimentos bruscos, preservando-se assim a saudável civilidade do ambiente. Sensores ao redor da fila medem o ruído e a agitação no local e, caso os passageiros não respeitem os razoáveis limites estipulados, alto-falantes emitem por cinco minutos um barulho desagradável e pequenos buracos no teto soltam um gás malcheiroso que irrita os olhos (na entrada das filas, um cartaz informativo bastante didático mostra os movimentos a serem evitados). Nada muito violento, deve-se concordar, embora aconteçam esporadicamente casos em que pessoas excessivamente efusivas são discretamente estranguladas por passageiros irritados ao seu redor. Apesar desse pequeno percalço, é preciso dizer que a forma com que a administradora do transporte lida com esses clientes tem sido comemorada pelos acionistas e elogiada pelos mais diversos analistas – o que é evidentemente motivo de orgulho para a empresa -, pois desde que o sistema foi implementado uma série de consequências positivas e inesperadas tiveram lugar: os usuários elaboraram espontaneamente uma série de mecanismos de auto-controle e de fiscalização recíproca, organizando-se em favor do bem-estar coletivo; a capacidade cognitiva dos passageiros dessa classe aumentou significativamente (posto que eles tiveram de elaborar formas mais sofisticadas e sutis de comunicação), conforme ficou demonstrado por uma série de testes científicos; e, por fim, os gastos com segurança nas estações foram bruscamente reduzidos, já que os passageiros passaram a regular o comportamento uns dos outros. A diferença entre o pacote mais básico e o da faixa de preço seguinte encontra-se na maior tolerância para com os sons que os passageiros podem emitir e a maior quantidade de movimentos permitidos.

Os dois pacotes de serviços intermediários não direcionam o comportamento do cliente como no caso dos pacotes básicos – o que evidentemente tem suas vantagens e desvantagens. A fiscalização mais frouxa não é de forma alguma o que de melhor se pode oferecer, já que desse modo os passageiros não podem desfrutar de um clima totalmente silencioso e livre de perturbações. Para corrigir essa falha, é dada ao consumidor dos pacotes intermediários a opção de utilizar um confortável tapa-ouvidos. Contudo, esse incômodo é compensado pela vantagem que a administradora concede aos passageiros: eles podem observar os clientes dos pacotes de serviço mais caros divertindo-se e desfrutando de todos os requintados prazeres a que têm acesso em seus momentos de espera. Os preços dos pacotes intermediários são, evidentemente, estipulados de acordo com a proximidade das filas de clientes de primeira classe. Além disso, o setor de marketing da empresa administradora resolveu sortear mensalmente um usuário para visitar as instalações em que se situam as filas mais exclusivas, de modo que todos os dias os clientes intermediários podem depositar em uma urna um pequeno papel com seu nome escrito. O felizardo que vence o sorteio pode ter acesso a uma fração limitada do que é oferecido aos usuários de primeira classe.

terça-feira, 7 de maio de 2013

A porta do elevador do meu prédio tem desenhada uma suástica mal coberta por tinta esmaltada laranja. Está ali desde antes de eu me mudar para o meu atual apartamento, há uns oito anos. Todos os dias eu passo por ela, embora nem sempre repare.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Na colônia penal

Ler Kafka é uma experiência que pode ser muito prazerosa, embora não deixe de apresentar, no mais das vezes, alguns grandes perigos. O prazer da imersão na obra kafkiana reside em sua maior riqueza, que é a de nos levar a sentir em nossa própria carne a brutalidade das situações descritas. O tipo de deleite que se tem nesse caso, contudo, não pertence à mesma categoria daqueles que se deliciam com a dor em si mesma; aqui, o leitor se depara com uma rara possibilidade de apreciação estética, de viver de modo hiperbólico o mal estar de ser humano.

Os perigos da jornada, por outro lado, também são grandes e numerosos. Primeiramente, um leitor incauto pode interpretar a resistência de Kafka em conceder a seus quase-personagens experiências redentoras como uma regra geral da vida: desse modo, seríamos conduzidos à crença quase que religiosa no fato de que todo prazer e todo o sentido que podemos encontrar em nossas melhores e piores vivências são, na verdade, pálidas e enganosas ilusões que construímos com o intuito de tornar nossa existência mais palatável. Enganar-se-ia quem assim pensasse: se, por um lado, essa constatação pode ser útil e verdadeira em alguns momentos, creio que nada pode ser mais mentiroso do que o encarceramento de toda e qualquer experiência nos moldes de uma interpretação unívoca. Nesse sentido, é possível – e, diria eu, necessário – experimentar as inescapáveis e angustiantes construções maquinais de Kafka em si mesmas, sem tomá-las como representantes de uma verdade absoluta.

Outra armadilha, com consequências menos severas – mas na qual um número muito grande de pessoas caiu –, é o de tomar a floresta de referências da obra kafkiana como um convite à superinterpretação. Tais superinterpretações, ao que me parece, tendem a expressar a paixão de alguns leitores por explicações teleológicas: muitas foram as tentativas de reduzir os escritos kafkianos a algum tipo de causalidade estrita. Uns tentaram enxergar todos os textos de Kafka como algum tipo de derivado da relação opressiva e conflituosa dele com seu pai - como se (caso vocês me permitam a caricatura) todas as máquinas reais ou metafóricas com as quais se deparam os heróis kafkianos fossem representações dessa relação. Outros entenderam Kafka como um autor que diagnosticava os males de seu tempo - a saber, o “desencantamento do mundo”. Nesse sentido, os protagonistas kafkianos representariam a angústia do homem comum diante da violenta impessoalidade e racionalidade das burocracias, que se recusam a fornecer explicações e, de certo modo, substituem a esfera do divino no que diz respeito à determinação dos destinos individuais. Em ambos os casos, a obra kafkiana é vista como uma espécie de sintoma: no primeiro caso, esse sintoma surge da forma peculiar com que foi moldada a psique do autor; no segundo, ela é vista como a causa direta do momento histórico que viveu Kafka. Desse segundo tipo de superinterpretação não-hermenêutica, aliás, surge uma outra, que poderíamos identificar como sócio-reducionista: nesse caso, tudo se passa como se tudo o que escreve o autor – qualquer autor, não apenas Kafka – fosse um resultado da soma de suas “relações sociais”, de sua “experiência de vida” e de sua posição dentro de um determinado “campo”.

Em seu texto sobre Kafka, Adorno reclama justamente desses tipos de interpretações. Embora eu também seja crítico com relação a essas perspectivas, eu não seria tão contundente quanto ele: penso que é possível construir múltiplas narrativas que atravessam os textos kafkianos, sem com isso realizar o movimento de resumir a obra e uma das trajetórias que ela permite. O caso, portanto, não é de esquecer a psicanálise ou a sociologia ao ler Kafka; mais do que isso, o leitor deve despir-se da arrogância típica do cientista e estabelecer um diálogo com a obra, percebendo os insights que ela talvez contenha.

Tendo mencionado, portanto, as linhas interpretativas que eu não seguirei, começo agora a esboçar minha leitura, tanto de Kafka quanto da novela que quero tratar – que é Na colônia penal. Inicio falando do estilo kafkiano, do modo particular com que o autor elaborou seus escritos.

Há autores que escrevem de modo a expulsar o leitor de dentro de seus textos, que o levam a refletir sobre coisas maiores ou menores do que aquilo que está escrito. Esse não é, certamente, o caso de Kafka: o jogo que ele nos convida a jogar não admite qualquer tipo de distração ou digressão. As primeiras linhas de seus textos – sobretudo de suas novelas e romances – podem ser enganosas, pois podem nos levar a crer que as imagens que nos são apresentadas carecem de elucidação. Contudo, a sequência das narrativas rapidamente desfaz essa ilusão: são tantas as imagens e os rastros e as trilhas que Kafka atira, uma atrás da outra, diante de nós – algumas de modo sutil, outras de modo brutal - que seria uma tarefa infinitamente enlouquecedora tentar desvendá-las uma a uma. Cabe ao leitor, portanto, resignar-se e seguir seu trajeto, com a sensação angustiante de que tudo é déja-vu - como diz Adorno.

O que resta, portanto, é a proximidade. Caso acompanhe o trajeto proposto por Kafka, o leitor deve deixar de ser leitor: ele deve tornar-se partícipe do drama. No início da apresentação, eu afirmei que Kafka não criou personagens, mas sim “quase-personagens”. O que pretendo dizer com isso é que todos os heróis, coadjuvantes e antagonistas kafkianos não passam de sombras, figurinos vazios à espera de seus atores. Ao ler Kafka, não nos deparamos com um universo habitado por personagens-tipo (ao estilo do realismo balzaquiano) e muito menos por seres aparentemente complexos, que refletem constantemente sobre si mesmos, sobre o que fazem e sobre o mundo que os cerca. O que se tem, ao contrário, é a simplicidade: todas as respostas e reações dadas são as mais óbvias e simples possíveis – respostas que qualquer um poderia dar. Esse é o início do segundo movimento de imersão a que Kafka obriga: ao nos apresentar personagens tão simples, ele nos incita a preencher com a nossa própria subjetividade algum dos figurinos que nos fornece.

A seguir, o figurino torna-se camisa de força. No caso de A colônia penal, por exemplo, perguntamo-nos o tempo todo por que o viajante não se rebela contra a máquina, posto que contava com o apreço do novo comandante e tinha condições para tanto. A situação, contudo, torna frívola a pergunta: o viajante não poderia fazer outra coisa que não apreciar o estranho – para dizer o mínimo - método de punição aplicado ao soldado rebelde. Era isso a que obrigava a etiqueta, já que o viajante era um forasteiro, alguém que não conhecia perfeitamente os costumes do lugar. Isso não impede que ele próprio – ou, no caso, o leitor – sinta aversão ao que observa; a situação torna-se assim absurdamente angustiante. Essa angústia dura até o momento em que o oficial que opera a máquina pressiona o viajante a opinar sobre seus métodos; contudo, mais uma vez a iniciativa da resposta não nos pertence. O alívio do protesto que leva ao suicídio do oficial não é completo, portanto: não se escolheu verbalizá-lo. O desconforto com essa situação se expressa no ato final do viajante, que não permite que o soldado raso que fora punido e nem o que auxiliava o oficial o acompanhem em sua viagem: que permaneçam na ilha todos os remanescentes de sua vergonha.

Outro traço primordial de Kafka é a literalidade. As imagens que ele expõe clamam por interpretação ao mesmo tempo em que são claras como a luz do dia: Gregor Samsa acorda inseto; a punição do criminoso é ter inscrito em sua pele, do modo mais doloroso e mortal possível, o próprio crime. É preciso aprofundar-se mais do que isso? A brutalidade e o absurdo da imagem passam pelo pensamento e se dirigem diretamente ao estômago. Apenas depois da difícil digestão é possível pensar, e com muita dificuldade; e o que resta do texto de Kafka, ao fim, não é um diagnóstico do mundo em que vivemos e nem tampouco um tratado sobre religião, moral ou o que quer que seja. O que sobra são as marcas da trajetória, um sentimento que leva a revisitar as próprias experiências. Os textos de Kafka são, portanto, como o manual de instruções que portava o oficial executor das penas: se alguns não conseguem superar seu caos aparente e interpretá-los, outros são capazes de nele enxergar o que bem entendem.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Índios verdadeiros contra argumentos falsos

Quem acompanha o noticiário da cidade do Rio de Janeiro ou, pelo menos, acessa com alguma freqüência as redes sociais, deve ter tomado conhecimento da situação do prédio do antigo museu do índio, que se situa ao lado do estádio do Maracanã. Esse local já abrigou, desde a segunda metade do século XIX, diversas instituições ligadas ao estudo e à divulgação das culturas indígenas do Brasil, e tem uma ligação fundamental com a bandeira da defesa dos direitos dos chamados povos nativos.


Apesar de sua importância histórica, a construção encontra-se em péssimo estado de conservação – resultado de anos e anos de descaso do poder público que, inclusive, impediram seu tombamento pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) – e, com a aproximação dos mega-eventos esportivo que serão realizados na capital fluminense, o terreno voltou a ser alvo de interesse da prefeitura e do governo do estado. Segundo declarações recentes de representantes das duas administrações, o antigo museu do índio deverá ser demolido para a construção de um estacionamento – o que teria sido, inclusive, uma solicitação direta da entidade máxima do futebol mundial, a FIFA (isso foi prontamente desmentido pela instituição, causando uma situação embaraçosa). A questão ganha contornos ainda mais dramáticos quando temos em vista que desde o ano de 2006 um grupo de indígenas pertencentes a cerca de 20 etnias ocupou o terreno, utilizando-o como local de moradia e de manutenção de suas tradições.


A disputa está longe de se realizar em um terreno favorável à manutenção do prédio, sendo marcada por uma gritante assimetria de poder. De um lado, duas esferas do executivo, comandando batalhões de polícia e agindo em nome de interesses bilionários; de outro, um grupo de indígenas e militantes que têm pouco a que recorrer - afora a divulgação de informações nas redes sociais e a crença na boa fé dos três Poderes. Tal assimetria se torna ainda mais gritante se levamos em consideração a constante campanha difamatória realizada pelos grandes meios de comunicação, que não perdem uma oportunidade sequer de tratar de maneira jocosa, mentirosa e sensacionalista a luta da Aldeia Maracanã. Esse é, aliás, o tratamento geralmente dado pela imprensa brasileira ao tema da causa indígena em todo o país.


Este texto é uma tentativa de constituir uma perspectiva diferente daquela que vem sendo exposta por aqueles veículos de comunicação e – a meu ver, infelizmente -reproduzida por muitas pessoas. Embora eu esteja muito longe de ser um etnólogo especializado nos chamados povos ameríndios, gostaria de mostrar o posicionamento de um leigo que teve a oportunidade de ler algumas coisas que, talvez, forneçam a possibilidade de uma leitura diferente dos acontecimentos acima descritos. Não encaminho aqui nenhum argumento de autoridade; meu desejo é pura e simplesmente expor uma opinião, à qual estou disposto a rever se for o caso. Dessa maneira, caso você não esteja minimamente inclinado a estabelecer um diálogo com o que apresento, sugiro que evite as úlceras e retorne às revistas, jornais, programas televisivos e blogues que espelham melhor a sua visão de mundo.


A título de exemplo, observemos esta educativa matéria publicada no site da revista Veja (afinal, mesmo o mais retumbante dos equívocos possui um profundo valor pedagógico). O texto já parte de uma descrição que tenta mostrar ao leitor a distância do modo de vida dos habitantes da Aldeia Maracanã do estereótipo clássico que se atribui ao indígena: eles mascam chiclete e usam tênis Nike. Esse tipo de imagem, recorrente em toda a argumentação, busca demonstrar - de modo não tão sutil – que não há índios de verdade ali, e que as pessoas que ocupam o terreno são oportunistas fazendo-se valer de uma suposta pertença étnica para adquirir algum tipo de vantagem.


(O teor implícito do artigo citado, aliás, é reprodução de algo que também está presente em outra matéria, a famigerada A farra da antropologia oportunista. Esse texto ganhou grande repercussão, entre outras coisas, por ter – ao que tudo indica – falsificado uma citação do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que respondeu de maneira elucidativa aos editores do veículo. Pelo que parece, porém, eles não estão lá muito dispostos à revisão de seus princípios.)


Os pressupostos dessa teoria (sic) que considera legítimos apenas os povos indígenas que mantêm suas ‘raízes’ são totalmente esdrúxulos e ultrapassados. Em primeiro lugar, tal retórica simplesmente se esquece do pequeno detalhe que foram os [quase] 513 anos de sistemática eliminação dos chamados povos originários das Américas. Reduzidos a uma ínfima porcentagem da população que residia no continente à época da invasão européia, os indígenas tiveram forçosamente de se integrar à sociedade que se instalou aqui desde então – perdendo não por escolha, mas por necessidade e imposição, boa parte de seus traços ditos “originais”.


Em segundo lugar, ela apresenta a ideia de que grupos sociais, culturais ou étnicos que realizam trocas simbólicas e materiais com outras sociedades próximas ou que os englobam (como é o caso dos indígenas brasileiros) perdem sua “autenticidade” – perdendo, portanto, a prerrogativa do encaminhamento de demandas de cunho político-cultural. Índio que assiste tevê e usa calça jeans não pode ter direito à terra, dizem os que professam o pensamento defendido pela revista Veja e seus similares; desse modo, esquece-se que nenhuma sociedade vive em completo isolamento com relação às demais, e que mesmo as características culturais vistas como “essenciais” de um determinado grupo são forjadas em um trabalho de diferenciação que, por um lado, define quais daquelas características são centrais e, por outro, delimita as fronteiras daquele mesmo grupo. Desse modo, o contato e a troca culturais não são necessariamente momentos de “perda de identidade” (seja lá o que essa teorização obscura entenda por identidade), mas sim acontecimentos que atravessam a história de todas as sociedades humanas, desempenhando o mais importante papel na construção e na reconstrução das mesmas (1).


Por fim, vem o ponto que considero mais importante: não cabe à revista Veja, ao governo ou a qualquer outra pessoa que não os indígenas definir se a tribo é “verdadeiramente indígena” ou não. O direito à autodeterminação dos povos – um dos mais básicos que existem – não deve ser substituído pela existência de “tribunais” (oficiais ou não, institucionalizados ou não) que, alegando a defesa de critérios objetivos, dêem a si mesmos a função de determinar quem é e quem não é índio, quilombola, etc. O ato de estabelecer critérios empíricos para a delimitação das etnias é algo que remonta aos momentos mais terríveis de nossa história recente, e mesmo suas mais incertas sombras devem ser combatidas com vigor.


P.S.: Para uma defesa contundente da legitimidade da ocupação Aldeia Maracanã, ver http://revistaforum.com.br/blog/2013/01/a-aldeia-maracana-e-dos-indios-diz-antropologo/


Nota:
(1)Para maiores – e melhores – esclarecimentos sobre definição apresentada, ver:


BARTH, Fredrick (org). (1969), Ethnic groups and boundaries: the social organization of culture difference. Oslo, Johansen & Nielsen Boktrykeri


OLIVEIRA, Roberto Cardoso. 2000. “Os (Des)caminhos da Identidade”, In Revista Brasileira de. Ciências Sociais, Fevereiro,Vol.15, n.42,