sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Índios verdadeiros contra argumentos falsos

Quem acompanha o noticiário da cidade do Rio de Janeiro ou, pelo menos, acessa com alguma freqüência as redes sociais, deve ter tomado conhecimento da situação do prédio do antigo museu do índio, que se situa ao lado do estádio do Maracanã. Esse local já abrigou, desde a segunda metade do século XIX, diversas instituições ligadas ao estudo e à divulgação das culturas indígenas do Brasil, e tem uma ligação fundamental com a bandeira da defesa dos direitos dos chamados povos nativos.


Apesar de sua importância histórica, a construção encontra-se em péssimo estado de conservação – resultado de anos e anos de descaso do poder público que, inclusive, impediram seu tombamento pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) – e, com a aproximação dos mega-eventos esportivo que serão realizados na capital fluminense, o terreno voltou a ser alvo de interesse da prefeitura e do governo do estado. Segundo declarações recentes de representantes das duas administrações, o antigo museu do índio deverá ser demolido para a construção de um estacionamento – o que teria sido, inclusive, uma solicitação direta da entidade máxima do futebol mundial, a FIFA (isso foi prontamente desmentido pela instituição, causando uma situação embaraçosa). A questão ganha contornos ainda mais dramáticos quando temos em vista que desde o ano de 2006 um grupo de indígenas pertencentes a cerca de 20 etnias ocupou o terreno, utilizando-o como local de moradia e de manutenção de suas tradições.


A disputa está longe de se realizar em um terreno favorável à manutenção do prédio, sendo marcada por uma gritante assimetria de poder. De um lado, duas esferas do executivo, comandando batalhões de polícia e agindo em nome de interesses bilionários; de outro, um grupo de indígenas e militantes que têm pouco a que recorrer - afora a divulgação de informações nas redes sociais e a crença na boa fé dos três Poderes. Tal assimetria se torna ainda mais gritante se levamos em consideração a constante campanha difamatória realizada pelos grandes meios de comunicação, que não perdem uma oportunidade sequer de tratar de maneira jocosa, mentirosa e sensacionalista a luta da Aldeia Maracanã. Esse é, aliás, o tratamento geralmente dado pela imprensa brasileira ao tema da causa indígena em todo o país.


Este texto é uma tentativa de constituir uma perspectiva diferente daquela que vem sendo exposta por aqueles veículos de comunicação e – a meu ver, infelizmente -reproduzida por muitas pessoas. Embora eu esteja muito longe de ser um etnólogo especializado nos chamados povos ameríndios, gostaria de mostrar o posicionamento de um leigo que teve a oportunidade de ler algumas coisas que, talvez, forneçam a possibilidade de uma leitura diferente dos acontecimentos acima descritos. Não encaminho aqui nenhum argumento de autoridade; meu desejo é pura e simplesmente expor uma opinião, à qual estou disposto a rever se for o caso. Dessa maneira, caso você não esteja minimamente inclinado a estabelecer um diálogo com o que apresento, sugiro que evite as úlceras e retorne às revistas, jornais, programas televisivos e blogues que espelham melhor a sua visão de mundo.


A título de exemplo, observemos esta educativa matéria publicada no site da revista Veja (afinal, mesmo o mais retumbante dos equívocos possui um profundo valor pedagógico). O texto já parte de uma descrição que tenta mostrar ao leitor a distância do modo de vida dos habitantes da Aldeia Maracanã do estereótipo clássico que se atribui ao indígena: eles mascam chiclete e usam tênis Nike. Esse tipo de imagem, recorrente em toda a argumentação, busca demonstrar - de modo não tão sutil – que não há índios de verdade ali, e que as pessoas que ocupam o terreno são oportunistas fazendo-se valer de uma suposta pertença étnica para adquirir algum tipo de vantagem.


(O teor implícito do artigo citado, aliás, é reprodução de algo que também está presente em outra matéria, a famigerada A farra da antropologia oportunista. Esse texto ganhou grande repercussão, entre outras coisas, por ter – ao que tudo indica – falsificado uma citação do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que respondeu de maneira elucidativa aos editores do veículo. Pelo que parece, porém, eles não estão lá muito dispostos à revisão de seus princípios.)


Os pressupostos dessa teoria (sic) que considera legítimos apenas os povos indígenas que mantêm suas ‘raízes’ são totalmente esdrúxulos e ultrapassados. Em primeiro lugar, tal retórica simplesmente se esquece do pequeno detalhe que foram os [quase] 513 anos de sistemática eliminação dos chamados povos originários das Américas. Reduzidos a uma ínfima porcentagem da população que residia no continente à época da invasão européia, os indígenas tiveram forçosamente de se integrar à sociedade que se instalou aqui desde então – perdendo não por escolha, mas por necessidade e imposição, boa parte de seus traços ditos “originais”.


Em segundo lugar, ela apresenta a ideia de que grupos sociais, culturais ou étnicos que realizam trocas simbólicas e materiais com outras sociedades próximas ou que os englobam (como é o caso dos indígenas brasileiros) perdem sua “autenticidade” – perdendo, portanto, a prerrogativa do encaminhamento de demandas de cunho político-cultural. Índio que assiste tevê e usa calça jeans não pode ter direito à terra, dizem os que professam o pensamento defendido pela revista Veja e seus similares; desse modo, esquece-se que nenhuma sociedade vive em completo isolamento com relação às demais, e que mesmo as características culturais vistas como “essenciais” de um determinado grupo são forjadas em um trabalho de diferenciação que, por um lado, define quais daquelas características são centrais e, por outro, delimita as fronteiras daquele mesmo grupo. Desse modo, o contato e a troca culturais não são necessariamente momentos de “perda de identidade” (seja lá o que essa teorização obscura entenda por identidade), mas sim acontecimentos que atravessam a história de todas as sociedades humanas, desempenhando o mais importante papel na construção e na reconstrução das mesmas (1).


Por fim, vem o ponto que considero mais importante: não cabe à revista Veja, ao governo ou a qualquer outra pessoa que não os indígenas definir se a tribo é “verdadeiramente indígena” ou não. O direito à autodeterminação dos povos – um dos mais básicos que existem – não deve ser substituído pela existência de “tribunais” (oficiais ou não, institucionalizados ou não) que, alegando a defesa de critérios objetivos, dêem a si mesmos a função de determinar quem é e quem não é índio, quilombola, etc. O ato de estabelecer critérios empíricos para a delimitação das etnias é algo que remonta aos momentos mais terríveis de nossa história recente, e mesmo suas mais incertas sombras devem ser combatidas com vigor.


P.S.: Para uma defesa contundente da legitimidade da ocupação Aldeia Maracanã, ver http://revistaforum.com.br/blog/2013/01/a-aldeia-maracana-e-dos-indios-diz-antropologo/


Nota:
(1)Para maiores – e melhores – esclarecimentos sobre definição apresentada, ver:


BARTH, Fredrick (org). (1969), Ethnic groups and boundaries: the social organization of culture difference. Oslo, Johansen & Nielsen Boktrykeri


OLIVEIRA, Roberto Cardoso. 2000. “Os (Des)caminhos da Identidade”, In Revista Brasileira de. Ciências Sociais, Fevereiro,Vol.15, n.42,