domingo, 10 de julho de 2011

Gênese

Foi justamente ali a primeira morada do homem. Ali: algo mais incerto do que o ato de apontar no horizonte algum lugar, uma floresta densa em que tudo era tudo confundindo-se consigo mesmo.

Ali dançavam as árvores antes de serem árvores, ao som e ao sabor de um vento que era a música que a nada aludia - simples som bruto, que levava consigo o sussurro das coisas vivas e mortas, das coisas animadas e inanimadas.

Foi ali que Deus – antes, obviamente, de ser batizado – pariu dentro de si a sua obra mais mal-acabada, imperfeita e incapaz. Foi ali que Deus construiu a corrupção de si mesmo, a desarticulação do tudo que era e que não achava que poderia deixar de ser.

Levando ao limite sua própria capacidade criativa, quis Deus fazer alguma coisa que não fosse como o resto – um pequeno e frágil brinquedo, incapaz de ser tudo ao mesmo tempo. Mas o brinquedo não respondeu logo aos seus desígnios, e foi considerado uma espécie de estorvo inútil. Era pura e simplesmente uma coisa muda, um monte de carne que não aparentava diferenciar-se.

Temeroso e orgulhoso, Deus não aceitou essa afronta à sua onipotência, e logo se pôs novamente a construir algo que não fosse tudo. Cá e lá fez uns ajustes no projeto inicial, mas a princípio ficou desapontado consigo - a coisa nova novamente o decepcionou.

Deu-se, porém, que as duas frustrantes invenções de Deus se puseram lado a lado um dia. Olharam-se por alguns instantes, até o momento em que a invenção mais nova tomou a atitude que modificou o destino do Universo: ao ver uma criatura longa e delgada que rastejava pelo chão, olhou para seu colega, arregalou os olhos e apontou. A invenção mais velha, assustada, percebeu que a coisa apontada era de uma cor diferente da sua; além disso não tinha pernas, não tinha uma cabeça redonda, mas sim uma achatada e em forma de seta. E, a partir daí, ambos observaram o redor e perceberam a esmagadora diferença eles e tudo o que não era eles – e até perceberam, enfim, o imenso abismo de diferenças que havia entre os dois, os quais não eram de forma alguma iguais.

Foi nesse momento, único e impossível de ser reproduzido, que a palavra tudo deixou de fazer sentido e passou a ser apenas uma palavra. Foi nesse momento que Deus foi batizado, e entendido como a coisa criadora de toda aquela indestrutível diversidade. Foi Deus, por fim, cultuado justamente por ter dado àquelas duas invenções – as quais chamaram-se a si mesmas pelos nomes de “Homem” e “Mulher” – a matéria à qual a criatividade seria capaz de dar tantos nomes quanto quisesse, fragmentando tudo na fé de que o tudo poderia ser encontrado no mais ínfimo pedaço de todas as coisas. E assim o Deus nomeado deixou de existir, posto que já era algo diferente de si mesmo.

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