terça-feira, 29 de novembro de 2011

Sobre Belo Monte

Ou: qual é o Brasil que queremos?

Nos últimos meses, vêm se intensificando os debates que cercam um dos mais polêmicos projetos de engenharia da história do Brasil, a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. Com o avanço da discussão, vão se sofisticando os argumentos tanto dos que defendem o projeto quanto dos que o atacam, e mais pessoas vão se engajando no embate. Eu venho acompanhando a questão há algum tempo, e comecei a perceber sua importância, principalmente, quando passei a apreciar as posições do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (um dos principais nomes da militância anti-Belo Monte, um dos mais importantes antropólogos do mundo) sobre o assunto.

Por questões “ideológicas” (que Althusser me desculpe por utilizar o termo tão levianamente), eu tendo a ser contrário a qualquer empreendimento que venha a alterar radicalmente a vida de um conjunto de pessoas sem que tal empreendimento esteja ligado a uma melhoria real, direta e substancial dessas vidas. Além do mais, não costumo me deixar comover pelo fetichismo frio dos números: pouco me importa se 10 famílias serão deslocadas para a construção de uma via ou se milhares serão desalojadas para que uma determinada cidade faça papel de civilizada diante do resto do mundo. Na minha opinião, o que importa no fim das contas é que o projeto traga benefícios reais para todas as partes envolvidas.

Apesar desse meu pendor, resolvi acompanhar a argumentação daqueles que se colocam a favor da construção de Belo Monte. Evidentemente, encontrei um ou outro mau-caráter que diminuiu aqui e ali o número de pessoas afetadas pelo projeto, e um ou outro malandro que escondeu esse ou aquele efeito perverso da obra. Isso, porém, não me surpreende; afinal, em qualquer embate ligado a uma questão tão importante e estratégica haverá, em ambos os lados, grupos (que podem ser maiores ou menores) de pessoas dispostas a trocar os dados reais por aqueles que mais lhes convêm. Deixando de lado esse tipo de discurso, guardei para mim apenas as perspectivas que me pareceram legítimas, sinceras e objetivas.

E continuei sendo contra Belo Monte.

A maioria dos defensores e detratores da construção da usina apresentam números, dados sobre impactos ambientais e, principalmente, questões relativas à eficiência do empreendimento na produção de energia elétrica. Nesse último ponto, aliás, tive a leiga impressão de que o lado dos defensores tem argumentado um pouco melhor do que o lado dos detratores.

Entretanto, esse tipo de argumentação ligado a termos como “eficiência”, “número de pessoas afetadas reduzido”, “danos ambientais menores do que outros tipos de produção de energia” não me convence nem um pouco. Explico por quê.

Independentemente do fato de a usina produzir essa ou aquela quantidade de energia por ano, independentemente de Belo Monte ser uma hidrelétrica e, portanto, menos impactante em termos ambientais do que uma usina que queima combustível para produzir energia, há uma lógica absolutamente perversa que subjaz sua realização. Essa lógica perversa diz respeito a um modo de encarar e de produzir o mundo, em que pessoas historicamente destituídas de qualquer possibilidade de acesso a serviços ou de vantagens mínimas são completamente ignoradas na hora de traçar um determinado projeto. No Brasil, os povos indígenas são os mais claros e extremos exemplos – mas de forma alguma os únicos - da reificação dessa lógica: constantemente são deles exigidas mudanças radicais em seus modos de vida (isso quando eles não são encarados como simples empecilhos e são cruelmente exterminados) para que a marcha austera e impiedosa do progresso se realize - organizada do alto da prancheta dos engenheiros, economistas e burocratas “racionais”, os quais dizem sempre que estão fazendo o que é mais necessário e adequado.

Alguém talvez argumente que os benefícios de um empreendimento desse tamanho são mais relevantes do que seus impactos. Ao que eu pergunto: benefícios para quem? Será que, de fato, a vida da população como um todo será melhorada com a construção da usina? Ou será que uma imensa parte energia produzida por Belo Monte será, como uma imensa parte da energia produzida por tantas outras usinas pelo Brasil, utilizada nos altos fornos das multinacionais produtoras de alumínio (ou de qualquer outra coisa)?

Além disso: por que grupos historicamente esquecidos pelo Estado têm de sofrer para que a sociedade urbana continue com seus padrões insanos de consumo de energia elétrica? Afinal, todo mundo acha que certos segmentos da sociedade – que são sempre os mesmos: índios, negros pobres, etc., etc., etc. - são obrigados a se sacrificarem em prol do bem estar da Nação – leia-se: em prol do bem-estar das classes médias e altas; entretanto, ninguém está disposto a fazer qualquer tipo de esforço para diminuir um pouco o seu próprio consumo de energia (a não ser, evidentemente, que o valor da conta de luz cresça demais), a trocar o sistema elétrico ineficiente da própria casa, a pressionar o governo para que ele subsidie a compra, por particulares, de painéis de energia solar. Do mesmo modo, o setor industrial privado, consumidor de imensa parcela da produção de eletricidade no Brasil, não está nem um pouco disposto a investir no desenvolvimento de novas tecnologias energéticas e muito menos a adotar ele mesmo técnicas de produção de energia menos impactantes sócio-ambientalmente: como esse tipo de investimento demanda aplicação do lucro das empresas – essa entidade sagrada que, em nome dos santos acionistas, não pode nunca, em hipótese alguma, diminuir -, a opção mais fácil é pressionar o Estado para que ele próprio invista em infra-estrutura. Afinal, como bem percebeu Poulantzas, é para isto (entre outras coisas) que o Estado serve: para fazer aquelas coisas que o capitalista não quer fazer, mas que ele precisa que alguém faça.

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Após colocar minha opinião sobre a usina de Belo Monte, gostaria de discutir muito rapidamente algo um tanto mais “abstrato”.

A meu ver, junto com o crescimento da importância econômica e geopolítica do Brasil, veio um problema gigantesco: o problema de decidir os rumos de nosso crescimento, de nosso desenvolvimento.

Estamos crescendo? Sem dúvida, e, diga-se de passagem, “como nunca antes na história desse país” - como diria o maior presidente que a história desse país já viu. E um sintoma disso é o fato de já termos problemas de país desenvolvido: atraímos um número cada vez maior de imigrantes ilegais, que são utilizados de maneira ilícita e desumana como mão-obra escrava ou semi-escrava (ou são tratados como lixo nas nossas cidades de fronteira); já temos ocupações militares fora de nossas fronteiras cuja legitimidade é questionada pelas populações por ela afetadas; e já exportamos o ônus que o suprimento de nossas necessidades acarreta. Observe os Estado Unidos e a única coisa que muda é a escala em que essas coisas acontecem por lá.

Entretanto, como em outros momentos da vida humana, a questão não é unicamente de tamanho: devemos nos preocupar com a forma com que nos valemos de nosso tamanho e de nosso crescimento. É esta a escolha que se coloca: ou construiremos um país desigual que sacrifica, no altar dos deuses do capitalismo, a população menos favorecida; ou construiremos um Brasil que promove a prosperidade de todos, que investe em educação, saúde, saneamento, etc..

Seja no alto Xingu, seja no Rio de Janeiro olímpico, é essa escolha que está em jogo em cada projeto, em cada orçamento, em cada decisão. E eu acredito que já tenha passado da hora de as discussões ligadas a tais decisões serem colocadas em termos mais humanos.