quinta-feira, 28 de julho de 2011

A besta e sua caverna

Há uma lenda um pouco antiga que fala de uma besta em uma caverna. Dizem que a escuridão a engole hoje e a engolirá por toda a eternidade, e que há muito ela não é avistada por olhos mortais.

Contudo, parece difícil que tal relato seja verdadeiro. Segundo me parece, é muito mais provável que ninguém seja capaz de enxergar a besta não por sua distância de tudo, mas pelo fato de ela estar próxima demais e grande demais. Creio, aliás, que tudo quanto existe está nas dobras de seu corpo, sob suas unhas hediondas, entre seus dedos longos que alcançam tudo.

De qualquer modo, esteja essa besta isolada ou próxima, ela está. Descrevê-la é uma prática há muito esquecida, posto que ela não foi vista em alguns séculos; tudo o que se tem hoje sobre ela são murmúrios antigos, palavras ditas em voz baixa e reproduzidas num tom ainda mais baixo.

Diz-se que a criatura tem longos braços finos, com pouca carne e alguma pele – pele essa que pende, amolecida e morta, alguns centímetros por sob a estrutura óssea do braço. Acredita-se que em tempos mais antigos, em que nada nem ninguém havia ainda encontrado a caverna em que vive a besta, ela se alimentava de pequenos vermes, finos como lombrigas, que rastejavam ao seu redor. Tateando no escuro, devorava os minúsculos seres que muito mal a sustentavam; e, dos restos de sua mastigação, se alimentavam os vermes sobreviventes.

Sua boca, larga e longa, cheia de dentes pontiagudos perfilados, lembra muito a boca de um crocodilo. Seu hálito nauseabundo anuncia que os dentes, apesar de eficientes, permitem que muito do que a besta consome permaneça por longos períodos de tempo acumulado nas pequenas frestas do interior da boca – o que talvez seja o pior destino possível a qualquer coisa que exista.

O único olho da besta, olho sem pálpebra, enxerga mal e não serve para muita coisa – apenas, talvez, para anunciar sua eterna vigília. O que lhe permite a sobrevivência é, de fato, sua excepcional capacidade de distinguir coisas com o tatear. Suas mãos nervosas e eficientes, sempre ávidas por encontrar qualquer coisa que possa ser digerida, destroem muito do que tocam, posto que avançam com força demasiada; entretanto, mesmo em meio aos escombros que produzem, são capazes de colher aquilo que lhes interessa.

Possui também um pescoço fino, o qual vive caído para a frente e só se levanta com muito esforço – certamente por efeito do peso da boca massiva da criatura e de sua formidável mandíbula. O corpo que sustenta essa monumental e bizarra cabeça, por sua vez, não é algo lá muito terrível de se olhar – lembra, aliás, muito do que são os homens que passam fome: consiste em um peito magro, ossudo, encarquilhado, sob o qual está uma barriga relativamente volumosa.

A aparente míngua da besta, contudo, não condiz com a realidade. Apesar de, em tempos passados, a fome ter sido quase mortal para ela, fato é que hoje sua caverna se encontra em franco progresso. Desde que o primeiro ser vivo – além, é claro, dos vermes – foi por ela encontrado e deglutido, seu paladar se refinou e a variedade de sua alimentação aumentou. Muitas coisas vivas passaram a adentrar espontaneamente a caverna, de início por pura e simples inocência, e mais tarde sob a promessa de que a escuridão em que vive a besta era a mais gratificante das possibilidades. Assim sendo, foram deixados em paz os insossos e nojentos vermes; ficaram eles, portanto, livres do instinto predatório e da natureza insaciável da besta, passando a viver também de restos mais ricos e variados – de modo que se multiplicaram e engordaram tanto que cobriram o corpo da besta, a qual está sempre sentada com as pernas cruzadas, até a região de sua cintura.

Discordo do mito, como já disse, porque penso que a besta não mais se alimenta daquilo que vem de fora da caverna. Passado tanto tempo, e considerando-se a voracidade que a criatura apresenta, não é possível, não é lógico, que coisas ainda existam fora de seu alcance. Daí minha conclusão: a meu ver, tudo o que era antes do pecado original – o da entrada na caverna – hoje existe aos restos, aos pedaços miúdos; está em vãos, em pequeníssimos fossos no próprio corpo da besta, entre seus dentes, em seus orifícios. Seu organismo, acostumado à breve riqueza, já reclama presas novas, apesar de se regozijar com os ainda abundantes restos não consumidos pelos vermes. Imagino que, dentro de pouco tempo, os próprios vermes voltarão a ser consumidos pela besta, voltarão a diminuir, emagrecer, a viver na miséria – até que, no mundo fora da caverna, surjam miraculosamente novas e inocentes criaturas que se disponham a adentrar a escuridão.

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