terça-feira, 22 de setembro de 2009

Pessoas que defecam pela boca

Escrevo o presente texto ainda cedo da manhã.


Não quero que meus poucos (se é que há algum) leitores pensem que sou eu uma criatura naturalmente amarga, cujo despertar inunda o Universo de energias negativas. Todavia, creia: não há boa vontade para com a vida que sobreviva aos golpes de palavras mal-faladas desferidos pelos pseudo-jornalistas da Globo.

O fato que causou meu penar foi o seguinte: estava eu, calmo e tranqüilo, a assistir televisão. Na tela, as notícias do programa jornalístico (?) Bom Dia Brasil eram apresentadas e, em alguns casos, comentadas. Uma dessas notícias me chamou a atenção: ela tratava da atuação diplomática brasileira no recente episódio do golpe de Estado em Honduras. Ao que parece, (como eu disse, ainda é cedo e não deu tempo de ver direito o que aconteceu) o presidente deposto pelos golpistas, o tal do Zelaya, resolveu bater na porta da embaixada brasileira no território hondurenho. Segundo disseram na matéria do Bom Dia Brasil, seria errado a nossa embaixada negar abrigo pro cara; o problema é que, ainda segundo a matéria, o Zelaya ficou um pouco folgado e resolveu usar a embaixada como plataforma política.

De repente, a situação mudou de figura. Quando eu pensava, em minha inocência juvenil, que o dia seria bom apesar da Globo, ocorreu o fato que me deixou tão mal-humorado: a troglodita da Miriam Leitão falou. Falou coisas que agora não me vêm á cabeça em sua totalidade; apenas um de seus dizeres estúpidos me inquietou.

Eis o acontecimento que tanto me irritou: ao comentar, en passant, o posicionamento do presidente venezuelano Hugo Chávez em relação àquele mesmo golpe de Estado no qual o Brasil aparentemente tomou partido, a filhote de porco soltou a seguinte pérola (a paráfrase é aproximada, que a minha memória não é tão boa assim):

-Hugo Chávez foi, nessa situação, (o Golpe de Estado em Honduras) a favor do conflito. Isso não é novidade (aí vem a pedrada. Tirem as crianças da sala!): é da natureza de Chávez ser a favor do conflito.

(Puta que pariu, ainda não acredito que ela disse isso.)

Fazendo um eufemismo daqueles bem floreados mesmo, o que a Miriam fez foi feio, muito feio. Fosse a mídia brasileira só um pouco séria, a criatura suína seria banida pra longe de qualquer meio de comunicação, coisa de não poder nem escrever redação de vestibular. Mas o verdadeiro problema, aquilo que cerca a aparentemente leviana declaração, é o seu caráter político extremamente bem-definido. A seguir, tentarei explicar o ponto de vista que defendo.



Sobre Chávez e sua ‘natureza’



Antes de entrar precisamente no mérito político da situação que acabo de descrever, cabe um esclarecimento: não sou nem nunca fui chavista. Mesmo que minha visão seja distorcida pelas semi-informações dadas pelas mídias brasileiras, não consigo retirar do vizinho do Quico e da Chiquinha o estigma de ditador, e eu não gosto de ditadores. Sei que sobre isso tudo que acabo de dizer há inúmeras controvérsias, e elas são absolutamente normais: afinal, a política é o campo da discussão, da negação de qualquer ideal de verdade absoluta. (Inclusive Nietzsche nos disse que, sendo rigoroso mesmo, a gente deve desconfiar de qualquer ideal de verdade absoluta. Mas, por hora, deixemos as pessoas se enganarem apenas no lado de fora da política.)

Só que não ser muito fã do Chávez não me tira de forma alguma o direito (e, por que não, o dever) de ser contra o que falou Miriam Leitão.

A idéia que atravessa o dizer da pseudo-jornalista globista é um equívoco sem tamanho. Ao atribuir as atitudes políticas de Chávez à sua suposta ‘natureza’, ela está mentindo em duas vias. Faz parecer que: 1)pode-se fazer política a partir da ‘natureza’ ou, se quiser, da vontade de uma só pessoa isolada e 2) a política pode ser realizada à margem da racionalidade.É bem provável que ambas as vias da mentira estejam invalidadas já a priori, posto que talvez estejam em contradição interna. Afinal política é, em primeiro lugar, fruto de interação entre pessoas distintas, de conflito. Além disso, a política é descendente direta da característica distintiva do homem em relação aos outros animais, a racionalidade. Em resumo: não se faz política nem sozinho e nem com o estômago, mesmo em um governo de (supostas) características ditatoriais como o de Chávez.

Portanto, ao apelar a dizeres que são filhos do mais grosseiro senso comum, Miriam Leitão demonstra toda a sua não inocência. Ela se utilizou indiretamente de um discurso mentiroso e que é, mesmo assim, legitimado, e brincou dessa maneira com as tantas baboseiras ditas a partir do desconhecimento das pessoas sobre certos aspectos.

Em primeiro lugar, por mais que aparentemente todo o Estado venezuelano se resuma à figura de Chávez, é impossível que ele governe à revelia e ao desagrado de todos os grupos de seu país. Fosse assim, ele não seria nada mais que um louco, a bradar inutilmente pelas ruas comandos sumariamente ignorados. Há portanto, consenso em algum nível: Chávez lidera um Estado, e o faz por ter seu poder legitimado por alguém; alguém que viu nele a possibilidade de ter seus próprios desejos e necessidades satisfeitas. (Historicamente, não me lembro de nenhum governante que tenha sobrevivido no poder sem o apoio de algum grupo poderoso.) Sendo assim, a frase de Miriam Leitão só é possível se tomarmos por verdadeira a seguinte premissa: Chávez governa porque suas ações são regidas por uma suposta ‘natureza’ coletiva majoritária do povo venezuelano. Mesmo com isso, o que Miriam diz deixa de ser uma completa estupidez e progride apenas à xôxa qualidade de sofisma.

Além disso, em segundo lugar, não se pode retirar da atitude política o seu caráter racional. Mesmo que a consideremos, no campo da doxa, o mais completo absurdo. Nada em política nasce de ‘naturezas’, individuais ou coletivas; afinal a política é, antes de tudo, a mais racional e a menos natural das atividades humanas. Tudo que não vem da razão é, portanto, apolítico.

Sendo assim, ao separar as atitudes de Chávez de seu racionalismo determinado, de suas causas e de seus fins, Miriam Leitão cria a improvável possibilidade da seguinte suposição: Chávez, um grande imbecil que governa sem apelar à razão, semeia o conflito a seu bel-prazer, devido à sua natureza. Portanto, diante dessa natureza inelutável, o presidente venezuelano se mantém no poder porque, por ter a ajuda dos deuses, tem dirigida a ele apenas uma fortuna favorável em todos os aspectos.