terça-feira, 23 de novembro de 2010

Querem matar o futebol

O futebol é um esporte eminentemente brasileiro. Digo isso não apenas pelo fato de os melhores jogadores do mundo em toda a história serem de nosso país; nem tampouco pelos revolucionários malabarismos táticos propostos pelos europeus, muitos dos quais nascidos da aparente invencibilidade de certas equipes que outrora vestiram a camisa amarela.

Não, o futebol não é nosso apenas porque nós somos os melhores nesse esporte, porque obrigamos os outros a darem um jeito de lidar com nossa insolúvel superioridade; o futebol é nosso porque nós o amamos mais do que qualquer um, e no meu mundo as coisas pertencem a quem é mais dedicado a elas.

Em outras freguesias, é verdade, magnatas e empreendedores dão ao nosso esporte roupas e jóias brilhantes, adornando com as modas mais modernas o jogo da bola nos pés. Em estádios do exterior, o que se vê são os “artistas da bola” pisarem em verdes tapetes, ao som dos insosos “uhs” e “ahs” emitidos pela platéia cada vez mais passiva, elitizada e civilizada.

Mas, aqui, o futebol não é negócio não. É coisa sentida. Ai de quem me chamar de consumidor no Maracanã! Lá eu sou sei-lá-o-quê, criatura de nome indefinido; não sou ninguém e sou todos. Grito junto sem precisar de aviso ou sinal, canto em uníssono com pessoas que nunca vi... sou o reflexo do que vejo no campo, e creio fielmente que posso intervir em algo que, segundo alguns imbecis da objetividade, foge ao meu controle.

Eis, entretanto, que o futebol brasileiro entra num processo de virar outra coisa. De repente, torcedores são obrigados a enfiar a bunda em cadeiras de plástico frio, engolindo cachorros-quentes de ouro, num silêncio cada vez mais aterrador. A integração com a coisa vista, a consciência inconsciente do torcedor de que ele é parte integrante do todo do espetáculo, está indo por água abaixo.

O que se vê é um processo de destruição de uma coisa que é de todos nós, e que só existe por isso. No local em que, outrora, a língua oficial era o palavrão, demagogos estúpidos proclamam a lei da boca limpa; junto deles, um certo segmento da sociedade, dono de todos os preceitos morais da boa cristandade, se vale de um discurso preconceituoso e moralista para defender pontos de vista que não fazem sentido algum.

Porque dizer que a suposta moralidade distorcida da população brasileira se reflete na maneira como encaramos o futebol é algo extremamente esdrúxulo. Futebol não é pra ser correto, justo, nem nada disso. O esporte tem regras, isso é claro; entretanto, burlá-las não é crime. Isso porque, como diz o filósofo, o esporte brasileiro é “a mais importante das coisas menos importantes”; ele não é nem um reflexo de nossa sociedade, e muito menos um mero esporte; é, com o perdão do clichê, a mais generalizada das paixões.

Dentro disso, aliás, cabe ressaltar que a paixão pelo futebol não nos dá o direito de sairmos no braço com ninguém pelo simples fato de esse alguém vestir a camisa de um clube que não o nosso; os que fazem isso são antes imbecis que nada têm a ver com clubes e com paixões, homens sem objetivos e sem preocupações que lhes façam, pelo menos, zelar pela própria sobrevivência. Quem gosta de futebol, essa arte esportiva, xinga e odeia o clube dos outros na medida em que vê nesse clube a possibilidade de ser melhor do que o seu. O ódio que descrevo, nesse sentido, nunca é contra o torcedor: é contra sua bandeira.

Retomando o argumento: a quebra das regras, no futebol, pode inclusive ser heróica. Que o diga Maradona, o homem que vingou seu país de uma estrondosa derrota bélica com um gol de mão. Se fosse com o pé, a vitória seria menos vitoriosa; quiçá, vergonhosa. Na Argentina pós-86, crianças não passaram a roubar na rua e nem o número de sonegadores aumentou; a vitória argentina sobre os ingleses foi apenas uma vitória, enfiada na guela dos bretões com requintes de crueldade. E, aqui pelo Brasil mesmo, duvido que qualquer um não se regozije ao ver a formidável e histórica cotovelada que o Pelé deu nas fuças de um João uruguaio, fazendo com que esse, além de apanhar, tomasse um cartão amarelo.

Sei que o que eu digo não quer dizer nada a ninguém. Mas eu digo mesmo assim. Ninguém vai ler isso aqui, e dentro de alguns anos o ingresso para ver jogo em estádio será inacessível para grande parte da população. De qualquer forma, tenho raiva: raiva porque completos imbecis pretendem destruir um esporte que só existe por conta das massas; raiva porque, daqui a pouco, xingar palavrão em estádio será coisa de tomar processo. Termino, pois, dedicando um inigualável aforismo de Nietzsche aos professores da “ética no esporte”:

“Ética é o meu ovo esquerdo.”

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