terça-feira, 11 de junho de 2013

Transporte coletivo

A entrada das estações de nosso sistema de transporte consiste em um buraco no chão, e para descer até o fundo é possível escolher entre uma escada e um escorregador de aço muito liso. A escada é a opção mais cansativa, obrigando as pessoas a caminharem por muitos e muitos metros. O escorregador é bem mais rápido, porém um pouco mais arriscado, deve-se admitir: muitas vezes as redes de contenção que devem interromper a trajetória dos passageiros no final da descida não estão adequadamente colocadas, e alguns acabam se estatelando contra a parede lá embaixo. A manutenção das redes e a limpeza das paredes com as quais as pessoas se chocam é feita regularmente; contudo, tristes acidentes são possíveis e por vezes quem se dirige à plataforma vê as marcas de sangue do último desafortunado. De qualquer modo, os administradores do transporte felizmente têm o bom-senso de indenizar as famílias das vítimas sem uma reclamação sequer, e tal gesto humanitário é tão rotineiro que as autoridades responsáveis são poupadas de preocupações com esse assunto.

Cada estação possui formato circular, contando com seis entradas equidistantes. Entre uma entrada e outra, vinte guichês são oferecidos aos clientes para que eles possam comprar seus bilhetes a um preço proporcional à reconhecida qualidade do produto oferecido. Inicialmente, todos os guichês eram de livre utilização, e cada passageiro decidia em qual fila entrar. Contudo, a sabedoria dos administradores de nosso transporte levou-os a oferecer também um conjunto de serviços em torno das filas - o que tornou a espera significativamente mais agradável: o passageiro pode adquirir um pacote que lhe permite ter acesso a um setor específico para seu perfil sócio-econômico, com vantagens e mimos adequados às suas necessidades e desejos.

Nos setores destinados a quem adquire os dois pacotes básicos de serviços, são oferecidos paz e silêncio. Aplica-se um procedimento simples que visa impedir o cliente de levantar muito a voz ou realizar movimentos bruscos, preservando-se assim a saudável civilidade do ambiente. Sensores ao redor da fila medem o ruído e a agitação no local e, caso os passageiros não respeitem os razoáveis limites estipulados, alto-falantes emitem por cinco minutos um barulho desagradável e pequenos buracos no teto soltam um gás malcheiroso que irrita os olhos (na entrada das filas, um cartaz informativo bastante didático mostra os movimentos a serem evitados). Nada muito violento, deve-se concordar, embora aconteçam esporadicamente casos em que pessoas excessivamente efusivas são discretamente estranguladas por passageiros irritados ao seu redor. Apesar desse pequeno percalço, é preciso dizer que a forma com que a administradora do transporte lida com esses clientes tem sido comemorada pelos acionistas e elogiada pelos mais diversos analistas – o que é evidentemente motivo de orgulho para a empresa -, pois desde que o sistema foi implementado uma série de consequências positivas e inesperadas tiveram lugar: os usuários elaboraram espontaneamente uma série de mecanismos de auto-controle e de fiscalização recíproca, organizando-se em favor do bem-estar coletivo; a capacidade cognitiva dos passageiros dessa classe aumentou significativamente (posto que eles tiveram de elaborar formas mais sofisticadas e sutis de comunicação), conforme ficou demonstrado por uma série de testes científicos; e, por fim, os gastos com segurança nas estações foram bruscamente reduzidos, já que os passageiros passaram a regular o comportamento uns dos outros. A diferença entre o pacote mais básico e o da faixa de preço seguinte encontra-se na maior tolerância para com os sons que os passageiros podem emitir e a maior quantidade de movimentos permitidos.

Os dois pacotes de serviços intermediários não direcionam o comportamento do cliente como no caso dos pacotes básicos – o que evidentemente tem suas vantagens e desvantagens. A fiscalização mais frouxa não é de forma alguma o que de melhor se pode oferecer, já que desse modo os passageiros não podem desfrutar de um clima totalmente silencioso e livre de perturbações. Para corrigir essa falha, é dada ao consumidor dos pacotes intermediários a opção de utilizar um confortável tapa-ouvidos. Contudo, esse incômodo é compensado pela vantagem que a administradora concede aos passageiros: eles podem observar os clientes dos pacotes de serviço mais caros divertindo-se e desfrutando de todos os requintados prazeres a que têm acesso em seus momentos de espera. Os preços dos pacotes intermediários são, evidentemente, estipulados de acordo com a proximidade das filas de clientes de primeira classe. Além disso, o setor de marketing da empresa administradora resolveu sortear mensalmente um usuário para visitar as instalações em que se situam as filas mais exclusivas, de modo que todos os dias os clientes intermediários podem depositar em uma urna um pequeno papel com seu nome escrito. O felizardo que vence o sorteio pode ter acesso a uma fração limitada do que é oferecido aos usuários de primeira classe.

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