quinta-feira, 11 de abril de 2013

Na colônia penal

Ler Kafka é uma experiência que pode ser muito prazerosa, embora não deixe de apresentar, no mais das vezes, alguns grandes perigos. O prazer da imersão na obra kafkiana reside em sua maior riqueza, que é a de nos levar a sentir em nossa própria carne a brutalidade das situações descritas. O tipo de deleite que se tem nesse caso, contudo, não pertence à mesma categoria daqueles que se deliciam com a dor em si mesma; aqui, o leitor se depara com uma rara possibilidade de apreciação estética, de viver de modo hiperbólico o mal estar de ser humano.

Os perigos da jornada, por outro lado, também são grandes e numerosos. Primeiramente, um leitor incauto pode interpretar a resistência de Kafka em conceder a seus quase-personagens experiências redentoras como uma regra geral da vida: desse modo, seríamos conduzidos à crença quase que religiosa no fato de que todo prazer e todo o sentido que podemos encontrar em nossas melhores e piores vivências são, na verdade, pálidas e enganosas ilusões que construímos com o intuito de tornar nossa existência mais palatável. Enganar-se-ia quem assim pensasse: se, por um lado, essa constatação pode ser útil e verdadeira em alguns momentos, creio que nada pode ser mais mentiroso do que o encarceramento de toda e qualquer experiência nos moldes de uma interpretação unívoca. Nesse sentido, é possível – e, diria eu, necessário – experimentar as inescapáveis e angustiantes construções maquinais de Kafka em si mesmas, sem tomá-las como representantes de uma verdade absoluta.

Outra armadilha, com consequências menos severas – mas na qual um número muito grande de pessoas caiu –, é o de tomar a floresta de referências da obra kafkiana como um convite à superinterpretação. Tais superinterpretações, ao que me parece, tendem a expressar a paixão de alguns leitores por explicações teleológicas: muitas foram as tentativas de reduzir os escritos kafkianos a algum tipo de causalidade estrita. Uns tentaram enxergar todos os textos de Kafka como algum tipo de derivado da relação opressiva e conflituosa dele com seu pai - como se (caso vocês me permitam a caricatura) todas as máquinas reais ou metafóricas com as quais se deparam os heróis kafkianos fossem representações dessa relação. Outros entenderam Kafka como um autor que diagnosticava os males de seu tempo - a saber, o “desencantamento do mundo”. Nesse sentido, os protagonistas kafkianos representariam a angústia do homem comum diante da violenta impessoalidade e racionalidade das burocracias, que se recusam a fornecer explicações e, de certo modo, substituem a esfera do divino no que diz respeito à determinação dos destinos individuais. Em ambos os casos, a obra kafkiana é vista como uma espécie de sintoma: no primeiro caso, esse sintoma surge da forma peculiar com que foi moldada a psique do autor; no segundo, ela é vista como a causa direta do momento histórico que viveu Kafka. Desse segundo tipo de superinterpretação não-hermenêutica, aliás, surge uma outra, que poderíamos identificar como sócio-reducionista: nesse caso, tudo se passa como se tudo o que escreve o autor – qualquer autor, não apenas Kafka – fosse um resultado da soma de suas “relações sociais”, de sua “experiência de vida” e de sua posição dentro de um determinado “campo”.

Em seu texto sobre Kafka, Adorno reclama justamente desses tipos de interpretações. Embora eu também seja crítico com relação a essas perspectivas, eu não seria tão contundente quanto ele: penso que é possível construir múltiplas narrativas que atravessam os textos kafkianos, sem com isso realizar o movimento de resumir a obra e uma das trajetórias que ela permite. O caso, portanto, não é de esquecer a psicanálise ou a sociologia ao ler Kafka; mais do que isso, o leitor deve despir-se da arrogância típica do cientista e estabelecer um diálogo com a obra, percebendo os insights que ela talvez contenha.

Tendo mencionado, portanto, as linhas interpretativas que eu não seguirei, começo agora a esboçar minha leitura, tanto de Kafka quanto da novela que quero tratar – que é Na colônia penal. Inicio falando do estilo kafkiano, do modo particular com que o autor elaborou seus escritos.

Há autores que escrevem de modo a expulsar o leitor de dentro de seus textos, que o levam a refletir sobre coisas maiores ou menores do que aquilo que está escrito. Esse não é, certamente, o caso de Kafka: o jogo que ele nos convida a jogar não admite qualquer tipo de distração ou digressão. As primeiras linhas de seus textos – sobretudo de suas novelas e romances – podem ser enganosas, pois podem nos levar a crer que as imagens que nos são apresentadas carecem de elucidação. Contudo, a sequência das narrativas rapidamente desfaz essa ilusão: são tantas as imagens e os rastros e as trilhas que Kafka atira, uma atrás da outra, diante de nós – algumas de modo sutil, outras de modo brutal - que seria uma tarefa infinitamente enlouquecedora tentar desvendá-las uma a uma. Cabe ao leitor, portanto, resignar-se e seguir seu trajeto, com a sensação angustiante de que tudo é déja-vu - como diz Adorno.

O que resta, portanto, é a proximidade. Caso acompanhe o trajeto proposto por Kafka, o leitor deve deixar de ser leitor: ele deve tornar-se partícipe do drama. No início da apresentação, eu afirmei que Kafka não criou personagens, mas sim “quase-personagens”. O que pretendo dizer com isso é que todos os heróis, coadjuvantes e antagonistas kafkianos não passam de sombras, figurinos vazios à espera de seus atores. Ao ler Kafka, não nos deparamos com um universo habitado por personagens-tipo (ao estilo do realismo balzaquiano) e muito menos por seres aparentemente complexos, que refletem constantemente sobre si mesmos, sobre o que fazem e sobre o mundo que os cerca. O que se tem, ao contrário, é a simplicidade: todas as respostas e reações dadas são as mais óbvias e simples possíveis – respostas que qualquer um poderia dar. Esse é o início do segundo movimento de imersão a que Kafka obriga: ao nos apresentar personagens tão simples, ele nos incita a preencher com a nossa própria subjetividade algum dos figurinos que nos fornece.

A seguir, o figurino torna-se camisa de força. No caso de A colônia penal, por exemplo, perguntamo-nos o tempo todo por que o viajante não se rebela contra a máquina, posto que contava com o apreço do novo comandante e tinha condições para tanto. A situação, contudo, torna frívola a pergunta: o viajante não poderia fazer outra coisa que não apreciar o estranho – para dizer o mínimo - método de punição aplicado ao soldado rebelde. Era isso a que obrigava a etiqueta, já que o viajante era um forasteiro, alguém que não conhecia perfeitamente os costumes do lugar. Isso não impede que ele próprio – ou, no caso, o leitor – sinta aversão ao que observa; a situação torna-se assim absurdamente angustiante. Essa angústia dura até o momento em que o oficial que opera a máquina pressiona o viajante a opinar sobre seus métodos; contudo, mais uma vez a iniciativa da resposta não nos pertence. O alívio do protesto que leva ao suicídio do oficial não é completo, portanto: não se escolheu verbalizá-lo. O desconforto com essa situação se expressa no ato final do viajante, que não permite que o soldado raso que fora punido e nem o que auxiliava o oficial o acompanhem em sua viagem: que permaneçam na ilha todos os remanescentes de sua vergonha.

Outro traço primordial de Kafka é a literalidade. As imagens que ele expõe clamam por interpretação ao mesmo tempo em que são claras como a luz do dia: Gregor Samsa acorda inseto; a punição do criminoso é ter inscrito em sua pele, do modo mais doloroso e mortal possível, o próprio crime. É preciso aprofundar-se mais do que isso? A brutalidade e o absurdo da imagem passam pelo pensamento e se dirigem diretamente ao estômago. Apenas depois da difícil digestão é possível pensar, e com muita dificuldade; e o que resta do texto de Kafka, ao fim, não é um diagnóstico do mundo em que vivemos e nem tampouco um tratado sobre religião, moral ou o que quer que seja. O que sobra são as marcas da trajetória, um sentimento que leva a revisitar as próprias experiências. Os textos de Kafka são, portanto, como o manual de instruções que portava o oficial executor das penas: se alguns não conseguem superar seu caos aparente e interpretá-los, outros são capazes de nele enxergar o que bem entendem.

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