O mês de junho de 2013 certamente já está entre os momentos mais importantes da história política brasileira. Pensando de maneira rápida, não consigo me lembrar de nenhum momento em que o país tenha sido palco de manifestações tão grandes e espontâneas; o único paralelo que sou capaz de traçar é com o contexto imediatamente anterior ao golpe de Estado que os militares e uma parte da elite econômica nacional executaram em 1964. Diga-se de passagem, considero esse paralelo extremamente importante: embora haja entre os dois períodos muitas diferenças em termos de conjuntura econômica e política, é preciso ter em mente que as classes dominantes, quando veem ameaçados sua supremacia e seus interesses imediatos, prescindem da democracia com uma facilidade inacreditável. A verdade, contudo, é que nada parece indicar a possibilidade real de um ataque imediato à democracia formal no Brasil – embora os valores democráticos estejam constantemente postos em xeque pela ação absurda, inconstitucional e injustificável das polícias militares (essas instituições totalmente anacrônicas e inadequadas para qualquer nação que se queira democrática) em todo o país, que não têm o menor pudor de utilizar justificativas esdrúxulas para coibir o direito constitucionalmente garantido da livre manifestação.
A meu ver, os sentidos de todos esses movimentos ainda se encontram em franca disputa, e eu destacaria dois de seus eixos que considero centrais: 1) a disputa entre as diferentes narrativas que tangenciam esse momento especial e extremamente complexo que vive o Brasil e 2) a disputa pelo direcionamento desse imenso fluxo de energia que está sendo depositado na sociedade brasileira. É obviamente difícil prever quem ou o que sairá vitorioso de todo esse processo, mas já é possível notar que setores importantes ligados à direita organizada – como as grandes empresas de comunicação – já desistiram de lutar contra os movimentos e adotaram a estratégia da construção de uma narrativa hegemônica dos protestos.
Uma consequência importante dos protestos recentes foi a resposta dos atores políticos ao momento de crise. Inicialmente, a maior parte deles limitou-se a criminalizar e a desconsiderar a relevância dos movimentos, condenando-os ora pelo “vandalismo”, ora pela suposta puerilidade de suas pautas (lembremo-nos como foram tratadas pelos prefeitos do Rio e de São Paulo as primeiras passeatas contra o aumento das tarifas de ônibus). Essa criminalização aberta das manifestações deu origem, por sua vez, ao evento que a meu ver deu às manifestações a proporção gigantesca que elas tomaram nos últimos dias: a ação brutal e injustificada da polícia paulista, que sob as ordens do governador Geraldo Alckmin atacou a esmo qualquer um que se parecesse com um manifestante no dia 18 de junho, dando tiros de bala de borracha no rosto de jornalistas e atirando gás lacrimogênio dentro de apartamentos em que pessoas filmavam ou acompanhava a situação caótica. Esse claro desafio a todos os preceitos básicos da democracia revoltou a população em todo o Brasil e alterou a cobertura da imprensa: jornais que até dias antes publicavam editoriais pedindo que as autoridades removessem energicamente os manifestantes da rua passaram a defender, à sua maneira, a legitimidade dos protestos.
A partir de então tais protestos tornaram-se mobilizações de massa, que levaram milhões de pessoas às ruas. A repressão policial continuou – e atingiu seu auge nos momentos de terror que a PM do Rio causou após a manifestação do dia 20 de junho, em que pessoas foram aleatoriamente perseguidas e agredidas no Centro da capital fluminense -, mas o discurso das autoridades mudou: embora governadores como Sérgio Cabral ainda ordenassem o uso da violência para dispersar multidões e o próprio governo federal tivesse oferecido a força nacional de segurança para reprimir os protestos, as falas das figuras públicas passaram a ser mais cautelosas, reconhecendo – pelo menos no plano da retórica oficial – o direito de livre expressão e a legitimidade de muitas pautas de reivindicação. Tais pautas, entretanto, perderam a relativa especificidade que tinham nas primeiras passeatas convocadas pelo Movimento Passe Livre – cujas principais bandeiras eram a anulação do aumento das tarifas de transporte e a questão mais ampla da mobilidade urbana – e passaram a englobar preocupações difusas e genéricas, relativas a temas como corrupção, má utilização de recursos públicos, qualidade do sistema educacional, etc. Nesse processo, a esquerda organizada foi em muitos casos saindo do centro dos movimentos, sendo recorrentemente hostilizada por pessoas “apartidárias”. Esse apartidarismo (ou anti-partidarismo), por sua vez, refletia tanto um sentimento relativamente brando e mais ou menos generalizado de desconfiança com relação às formas tradicionais de representação política quanto uma crescente inserção dos grupos organizados de extrema-direita nas manifestações.
Hoje (dia 28 de junho), embora ainda aconteçam diversas passeatas e a polícia continue com sua atuação extremamente violenta, talvez já seja possível vislumbrar o início do fim do movimento iniciado em junho – ou, pelo menos, o fim de uma fase desse movimento. Os políticos começaram a mostrar serviço, e muitas pessoas parecem satisfeitas com os rumos que tudo está tomando: a presidenta Dilma Rousseff anunciou um conjunto de pactos que fez com os governadores, com o objetivo de melhorar a qualidade dos serviços públicos; além disso, encampou a luta pela reforma política (que, justiça seja feita, tanto a militância quanto muitos parlamentares do Partido dos Trabalhadores já vinham tentando emplacar a algum tempo) e pelo direcionamento dos royalties do petróleo para a educação pública. Já a câmara dos deputados rejeitou a famigerada PEC 37 (algo que, diga-se de passagem, não foi aprovado por uma grande parte dos juristas brasileiros); projetos de lei e de emendas constitucionais que estavam engavetados há algum tempo foram finalmente votados; e alguns parlamentares fizeram bons discursos de mea culpa e de avaliação do papel do Legislativo na política nacional. Todos esses acontecimentos apontam para o fato de que é bem improvável que os eventos de junho de 2013 não tenham reverberações relevantes, pelo menos na esfera institucional.
Entretanto, mesmo em um momento tão prematuro, faz-se necessário avaliar os sentidos das consequências que os protestos que tomaram conta do país geraram. É preciso observar se estamos ou não diante de um processo de avanço da democracia; é preciso analisar criticamente a conjuntura apresentada. Para isso, faz-se necessária a avaliação das causas que levaram aos protestos de Junho, para que então seja possível avaliar em que medida as políticas aplicadas podem ou não ser efetivas com relação aos fins a que se propõem.
Em primeiro lugar, acredito que ainda é cedo para que se realizem observações sociológicas mais profundas. Desse modo, creio que ainda não é possível avaliar o que os protestos das últimas semanas representam, por exemplo, para a luta de classes ou para a distribuição do poder na sociedade brasileira. Contudo, é bem evidente que, num plano mais superficial, essas manifestações são o sintoma mais evidente de uma crise institucional importante que vem se desenvolvendo no Brasil há algum tempo. Conforme já foi dito, grande parte da população desconfia muito das esferas tradicionais de representação política, e muitas das organizações existentes – sindicatos, partidos, etc. – descolaram-se demais do dia-a-dia daqueles que pretensamente representam. A transparência pública é algo praticamente inexistente no Brasil, e não somente no que diz respeito aos gastos públicos e à corrupção: decisões políticas que impactam diretamente na vida de milhões de pessoas são tomadas dentro de gabinetes, e o poder Legislativo em muitos casos serve apenas para referendar políticas predeterminadas produzidas pelo Executivo. A obsessão generalizada com o tema da corrupção, aliás, tem muito a ver com isso: como muitos dos pactos são feitos às escuras – por diversas vezes na fronteira confusa entre o legal e o ilegal, o legítimo e o ilegítimo -, o cidadão está sempre desconfiado de toda e qualquer ação que venha da esfera política. Nesse caso, o segredo favorece a imaginação, que por sua vez alimenta a fantasia da safadeza generalizada (fantasia essa que, convenhamos, não deve ser de todo falsa).
Segundo me parece, a maior parte dos políticos percebeu que é aí que está o problema, e que esse é o caráter geral do clamor das ruas. A ideia da reforma política aparenta vir dessa constatação, bem como o pacto firmado em favor da qualidade dos serviços públicos. Mas mesmo partindo do ingênuo pressuposto de que nossos representantes eleitos resolveram, de repente e finalmente, favorecer o crescimento da participação popular na vida pública brasileira, é preciso ter muita cautela: nada garante que as medidas até aqui apresentadas terão as consequências previstas e prometidas por seus proponentes, e nada garante que elas auxiliarão o avanço real da democracia no país. Acredito que, independentemente das propostas de reforma que serão efetivamente dispostas diante do eleitor, deve-se reconhecer a priori a limitação intrínseca das mesmas. Trocando em miúdos: a reforma política não deve ser apresentada como uma panaceia, pois se acontecer de outro modo é extremamente provável que a população se decepcione com os resultados obtidos e, consequentemente, acabe criando desconfianças quanto à democracia como um todo. Além disso, seria muito mais proveitoso se os debates em torno do plebiscito fossem realizados da forma mais horizontal possível, permitindo que as pessoas comuns discutam em pé de igualdade os caminhos possíveis. E, por fim, creio que seria muito interessante se o Brasil iniciasse para já uma grande campanha de conscientização popular, mostrando as possibilidade que a Constituição de 88 abre para a participação política e para o controle da máquina pública (e eles são muitos, embora não sejam ainda suficientes), permitindo que essas possibilidades sejam exploradas – ampliando-se assim o poder decisório do povo no que diz respeito a questões que lhe afetam diretamente.
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