O mês de junho de 2013 certamente já está entre os momentos mais importantes da história política brasileira. Pensando de maneira rápida, não consigo me lembrar de nenhum momento em que o país tenha sido palco de manifestações tão grandes e espontâneas; o único paralelo que sou capaz de traçar é com o contexto imediatamente anterior ao golpe de Estado que os militares e uma parte da elite econômica nacional executaram em 1964. Diga-se de passagem, considero esse paralelo extremamente importante: embora haja entre os dois períodos muitas diferenças em termos de conjuntura econômica e política, é preciso ter em mente que as classes dominantes, quando veem ameaçados sua supremacia e seus interesses imediatos, prescindem da democracia com uma facilidade inacreditável. A verdade, contudo, é que nada parece indicar a possibilidade real de um ataque imediato à democracia formal no Brasil – embora os valores democráticos estejam constantemente postos em xeque pela ação absurda, inconstitucional e injustificável das polícias militares (essas instituições totalmente anacrônicas e inadequadas para qualquer nação que se queira democrática) em todo o país, que não têm o menor pudor de utilizar justificativas esdrúxulas para coibir o direito constitucionalmente garantido da livre manifestação.
A meu ver, os sentidos de todos esses movimentos ainda se encontram em franca disputa, e eu destacaria dois de seus eixos que considero centrais: 1) a disputa entre as diferentes narrativas que tangenciam esse momento especial e extremamente complexo que vive o Brasil e 2) a disputa pelo direcionamento desse imenso fluxo de energia que está sendo depositado na sociedade brasileira. É obviamente difícil prever quem ou o que sairá vitorioso de todo esse processo, mas já é possível notar que setores importantes ligados à direita organizada – como as grandes empresas de comunicação – já desistiram de lutar contra os movimentos e adotaram a estratégia da construção de uma narrativa hegemônica dos protestos.
Uma consequência importante dos protestos recentes foi a resposta dos atores políticos ao momento de crise. Inicialmente, a maior parte deles limitou-se a criminalizar e a desconsiderar a relevância dos movimentos, condenando-os ora pelo “vandalismo”, ora pela suposta puerilidade de suas pautas (lembremo-nos como foram tratadas pelos prefeitos do Rio e de São Paulo as primeiras passeatas contra o aumento das tarifas de ônibus). Essa criminalização aberta das manifestações deu origem, por sua vez, ao evento que a meu ver deu às manifestações a proporção gigantesca que elas tomaram nos últimos dias: a ação brutal e injustificada da polícia paulista, que sob as ordens do governador Geraldo Alckmin atacou a esmo qualquer um que se parecesse com um manifestante no dia 18 de junho, dando tiros de bala de borracha no rosto de jornalistas e atirando gás lacrimogênio dentro de apartamentos em que pessoas filmavam ou acompanhava a situação caótica. Esse claro desafio a todos os preceitos básicos da democracia revoltou a população em todo o Brasil e alterou a cobertura da imprensa: jornais que até dias antes publicavam editoriais pedindo que as autoridades removessem energicamente os manifestantes da rua passaram a defender, à sua maneira, a legitimidade dos protestos.
A partir de então tais protestos tornaram-se mobilizações de massa, que levaram milhões de pessoas às ruas. A repressão policial continuou – e atingiu seu auge nos momentos de terror que a PM do Rio causou após a manifestação do dia 20 de junho, em que pessoas foram aleatoriamente perseguidas e agredidas no Centro da capital fluminense -, mas o discurso das autoridades mudou: embora governadores como Sérgio Cabral ainda ordenassem o uso da violência para dispersar multidões e o próprio governo federal tivesse oferecido a força nacional de segurança para reprimir os protestos, as falas das figuras públicas passaram a ser mais cautelosas, reconhecendo – pelo menos no plano da retórica oficial – o direito de livre expressão e a legitimidade de muitas pautas de reivindicação. Tais pautas, entretanto, perderam a relativa especificidade que tinham nas primeiras passeatas convocadas pelo Movimento Passe Livre – cujas principais bandeiras eram a anulação do aumento das tarifas de transporte e a questão mais ampla da mobilidade urbana – e passaram a englobar preocupações difusas e genéricas, relativas a temas como corrupção, má utilização de recursos públicos, qualidade do sistema educacional, etc. Nesse processo, a esquerda organizada foi em muitos casos saindo do centro dos movimentos, sendo recorrentemente hostilizada por pessoas “apartidárias”. Esse apartidarismo (ou anti-partidarismo), por sua vez, refletia tanto um sentimento relativamente brando e mais ou menos generalizado de desconfiança com relação às formas tradicionais de representação política quanto uma crescente inserção dos grupos organizados de extrema-direita nas manifestações.
Hoje (dia 28 de junho), embora ainda aconteçam diversas passeatas e a polícia continue com sua atuação extremamente violenta, talvez já seja possível vislumbrar o início do fim do movimento iniciado em junho – ou, pelo menos, o fim de uma fase desse movimento. Os políticos começaram a mostrar serviço, e muitas pessoas parecem satisfeitas com os rumos que tudo está tomando: a presidenta Dilma Rousseff anunciou um conjunto de pactos que fez com os governadores, com o objetivo de melhorar a qualidade dos serviços públicos; além disso, encampou a luta pela reforma política (que, justiça seja feita, tanto a militância quanto muitos parlamentares do Partido dos Trabalhadores já vinham tentando emplacar a algum tempo) e pelo direcionamento dos royalties do petróleo para a educação pública. Já a câmara dos deputados rejeitou a famigerada PEC 37 (algo que, diga-se de passagem, não foi aprovado por uma grande parte dos juristas brasileiros); projetos de lei e de emendas constitucionais que estavam engavetados há algum tempo foram finalmente votados; e alguns parlamentares fizeram bons discursos de mea culpa e de avaliação do papel do Legislativo na política nacional. Todos esses acontecimentos apontam para o fato de que é bem improvável que os eventos de junho de 2013 não tenham reverberações relevantes, pelo menos na esfera institucional.
Entretanto, mesmo em um momento tão prematuro, faz-se necessário avaliar os sentidos das consequências que os protestos que tomaram conta do país geraram. É preciso observar se estamos ou não diante de um processo de avanço da democracia; é preciso analisar criticamente a conjuntura apresentada. Para isso, faz-se necessária a avaliação das causas que levaram aos protestos de Junho, para que então seja possível avaliar em que medida as políticas aplicadas podem ou não ser efetivas com relação aos fins a que se propõem.
Em primeiro lugar, acredito que ainda é cedo para que se realizem observações sociológicas mais profundas. Desse modo, creio que ainda não é possível avaliar o que os protestos das últimas semanas representam, por exemplo, para a luta de classes ou para a distribuição do poder na sociedade brasileira. Contudo, é bem evidente que, num plano mais superficial, essas manifestações são o sintoma mais evidente de uma crise institucional importante que vem se desenvolvendo no Brasil há algum tempo. Conforme já foi dito, grande parte da população desconfia muito das esferas tradicionais de representação política, e muitas das organizações existentes – sindicatos, partidos, etc. – descolaram-se demais do dia-a-dia daqueles que pretensamente representam. A transparência pública é algo praticamente inexistente no Brasil, e não somente no que diz respeito aos gastos públicos e à corrupção: decisões políticas que impactam diretamente na vida de milhões de pessoas são tomadas dentro de gabinetes, e o poder Legislativo em muitos casos serve apenas para referendar políticas predeterminadas produzidas pelo Executivo. A obsessão generalizada com o tema da corrupção, aliás, tem muito a ver com isso: como muitos dos pactos são feitos às escuras – por diversas vezes na fronteira confusa entre o legal e o ilegal, o legítimo e o ilegítimo -, o cidadão está sempre desconfiado de toda e qualquer ação que venha da esfera política. Nesse caso, o segredo favorece a imaginação, que por sua vez alimenta a fantasia da safadeza generalizada (fantasia essa que, convenhamos, não deve ser de todo falsa).
Segundo me parece, a maior parte dos políticos percebeu que é aí que está o problema, e que esse é o caráter geral do clamor das ruas. A ideia da reforma política aparenta vir dessa constatação, bem como o pacto firmado em favor da qualidade dos serviços públicos. Mas mesmo partindo do ingênuo pressuposto de que nossos representantes eleitos resolveram, de repente e finalmente, favorecer o crescimento da participação popular na vida pública brasileira, é preciso ter muita cautela: nada garante que as medidas até aqui apresentadas terão as consequências previstas e prometidas por seus proponentes, e nada garante que elas auxiliarão o avanço real da democracia no país. Acredito que, independentemente das propostas de reforma que serão efetivamente dispostas diante do eleitor, deve-se reconhecer a priori a limitação intrínseca das mesmas. Trocando em miúdos: a reforma política não deve ser apresentada como uma panaceia, pois se acontecer de outro modo é extremamente provável que a população se decepcione com os resultados obtidos e, consequentemente, acabe criando desconfianças quanto à democracia como um todo. Além disso, seria muito mais proveitoso se os debates em torno do plebiscito fossem realizados da forma mais horizontal possível, permitindo que as pessoas comuns discutam em pé de igualdade os caminhos possíveis. E, por fim, creio que seria muito interessante se o Brasil iniciasse para já uma grande campanha de conscientização popular, mostrando as possibilidade que a Constituição de 88 abre para a participação política e para o controle da máquina pública (e eles são muitos, embora não sejam ainda suficientes), permitindo que essas possibilidades sejam exploradas – ampliando-se assim o poder decisório do povo no que diz respeito a questões que lhe afetam diretamente.
quinta-feira, 27 de junho de 2013
terça-feira, 11 de junho de 2013
Transporte coletivo
A entrada das estações de nosso sistema de transporte consiste em um buraco no chão, e para descer até o fundo é possível escolher entre uma escada e um escorregador de aço muito liso. A escada é a opção mais cansativa, obrigando as pessoas a caminharem por muitos e muitos metros. O escorregador é bem mais rápido, porém um pouco mais arriscado, deve-se admitir: muitas vezes as redes de contenção que devem interromper a trajetória dos passageiros no final da descida não estão adequadamente colocadas, e alguns acabam se estatelando contra a parede lá embaixo. A manutenção das redes e a limpeza das paredes com as quais as pessoas se chocam é feita regularmente; contudo, tristes acidentes são possíveis e por vezes quem se dirige à plataforma vê as marcas de sangue do último desafortunado. De qualquer modo, os administradores do transporte felizmente têm o bom-senso de indenizar as famílias das vítimas sem uma reclamação sequer, e tal gesto humanitário é tão rotineiro que as autoridades responsáveis são poupadas de preocupações com esse assunto.
Cada estação possui formato circular, contando com seis entradas equidistantes. Entre uma entrada e outra, vinte guichês são oferecidos aos clientes para que eles possam comprar seus bilhetes a um preço proporcional à reconhecida qualidade do produto oferecido. Inicialmente, todos os guichês eram de livre utilização, e cada passageiro decidia em qual fila entrar. Contudo, a sabedoria dos administradores de nosso transporte levou-os a oferecer também um conjunto de serviços em torno das filas - o que tornou a espera significativamente mais agradável: o passageiro pode adquirir um pacote que lhe permite ter acesso a um setor específico para seu perfil sócio-econômico, com vantagens e mimos adequados às suas necessidades e desejos.
Nos setores destinados a quem adquire os dois pacotes básicos de serviços, são oferecidos paz e silêncio. Aplica-se um procedimento simples que visa impedir o cliente de levantar muito a voz ou realizar movimentos bruscos, preservando-se assim a saudável civilidade do ambiente. Sensores ao redor da fila medem o ruído e a agitação no local e, caso os passageiros não respeitem os razoáveis limites estipulados, alto-falantes emitem por cinco minutos um barulho desagradável e pequenos buracos no teto soltam um gás malcheiroso que irrita os olhos (na entrada das filas, um cartaz informativo bastante didático mostra os movimentos a serem evitados). Nada muito violento, deve-se concordar, embora aconteçam esporadicamente casos em que pessoas excessivamente efusivas são discretamente estranguladas por passageiros irritados ao seu redor. Apesar desse pequeno percalço, é preciso dizer que a forma com que a administradora do transporte lida com esses clientes tem sido comemorada pelos acionistas e elogiada pelos mais diversos analistas – o que é evidentemente motivo de orgulho para a empresa -, pois desde que o sistema foi implementado uma série de consequências positivas e inesperadas tiveram lugar: os usuários elaboraram espontaneamente uma série de mecanismos de auto-controle e de fiscalização recíproca, organizando-se em favor do bem-estar coletivo; a capacidade cognitiva dos passageiros dessa classe aumentou significativamente (posto que eles tiveram de elaborar formas mais sofisticadas e sutis de comunicação), conforme ficou demonstrado por uma série de testes científicos; e, por fim, os gastos com segurança nas estações foram bruscamente reduzidos, já que os passageiros passaram a regular o comportamento uns dos outros. A diferença entre o pacote mais básico e o da faixa de preço seguinte encontra-se na maior tolerância para com os sons que os passageiros podem emitir e a maior quantidade de movimentos permitidos.
Os dois pacotes de serviços intermediários não direcionam o comportamento do cliente como no caso dos pacotes básicos – o que evidentemente tem suas vantagens e desvantagens. A fiscalização mais frouxa não é de forma alguma o que de melhor se pode oferecer, já que desse modo os passageiros não podem desfrutar de um clima totalmente silencioso e livre de perturbações. Para corrigir essa falha, é dada ao consumidor dos pacotes intermediários a opção de utilizar um confortável tapa-ouvidos. Contudo, esse incômodo é compensado pela vantagem que a administradora concede aos passageiros: eles podem observar os clientes dos pacotes de serviço mais caros divertindo-se e desfrutando de todos os requintados prazeres a que têm acesso em seus momentos de espera. Os preços dos pacotes intermediários são, evidentemente, estipulados de acordo com a proximidade das filas de clientes de primeira classe. Além disso, o setor de marketing da empresa administradora resolveu sortear mensalmente um usuário para visitar as instalações em que se situam as filas mais exclusivas, de modo que todos os dias os clientes intermediários podem depositar em uma urna um pequeno papel com seu nome escrito. O felizardo que vence o sorteio pode ter acesso a uma fração limitada do que é oferecido aos usuários de primeira classe.
Cada estação possui formato circular, contando com seis entradas equidistantes. Entre uma entrada e outra, vinte guichês são oferecidos aos clientes para que eles possam comprar seus bilhetes a um preço proporcional à reconhecida qualidade do produto oferecido. Inicialmente, todos os guichês eram de livre utilização, e cada passageiro decidia em qual fila entrar. Contudo, a sabedoria dos administradores de nosso transporte levou-os a oferecer também um conjunto de serviços em torno das filas - o que tornou a espera significativamente mais agradável: o passageiro pode adquirir um pacote que lhe permite ter acesso a um setor específico para seu perfil sócio-econômico, com vantagens e mimos adequados às suas necessidades e desejos.
Nos setores destinados a quem adquire os dois pacotes básicos de serviços, são oferecidos paz e silêncio. Aplica-se um procedimento simples que visa impedir o cliente de levantar muito a voz ou realizar movimentos bruscos, preservando-se assim a saudável civilidade do ambiente. Sensores ao redor da fila medem o ruído e a agitação no local e, caso os passageiros não respeitem os razoáveis limites estipulados, alto-falantes emitem por cinco minutos um barulho desagradável e pequenos buracos no teto soltam um gás malcheiroso que irrita os olhos (na entrada das filas, um cartaz informativo bastante didático mostra os movimentos a serem evitados). Nada muito violento, deve-se concordar, embora aconteçam esporadicamente casos em que pessoas excessivamente efusivas são discretamente estranguladas por passageiros irritados ao seu redor. Apesar desse pequeno percalço, é preciso dizer que a forma com que a administradora do transporte lida com esses clientes tem sido comemorada pelos acionistas e elogiada pelos mais diversos analistas – o que é evidentemente motivo de orgulho para a empresa -, pois desde que o sistema foi implementado uma série de consequências positivas e inesperadas tiveram lugar: os usuários elaboraram espontaneamente uma série de mecanismos de auto-controle e de fiscalização recíproca, organizando-se em favor do bem-estar coletivo; a capacidade cognitiva dos passageiros dessa classe aumentou significativamente (posto que eles tiveram de elaborar formas mais sofisticadas e sutis de comunicação), conforme ficou demonstrado por uma série de testes científicos; e, por fim, os gastos com segurança nas estações foram bruscamente reduzidos, já que os passageiros passaram a regular o comportamento uns dos outros. A diferença entre o pacote mais básico e o da faixa de preço seguinte encontra-se na maior tolerância para com os sons que os passageiros podem emitir e a maior quantidade de movimentos permitidos.
Os dois pacotes de serviços intermediários não direcionam o comportamento do cliente como no caso dos pacotes básicos – o que evidentemente tem suas vantagens e desvantagens. A fiscalização mais frouxa não é de forma alguma o que de melhor se pode oferecer, já que desse modo os passageiros não podem desfrutar de um clima totalmente silencioso e livre de perturbações. Para corrigir essa falha, é dada ao consumidor dos pacotes intermediários a opção de utilizar um confortável tapa-ouvidos. Contudo, esse incômodo é compensado pela vantagem que a administradora concede aos passageiros: eles podem observar os clientes dos pacotes de serviço mais caros divertindo-se e desfrutando de todos os requintados prazeres a que têm acesso em seus momentos de espera. Os preços dos pacotes intermediários são, evidentemente, estipulados de acordo com a proximidade das filas de clientes de primeira classe. Além disso, o setor de marketing da empresa administradora resolveu sortear mensalmente um usuário para visitar as instalações em que se situam as filas mais exclusivas, de modo que todos os dias os clientes intermediários podem depositar em uma urna um pequeno papel com seu nome escrito. O felizardo que vence o sorteio pode ter acesso a uma fração limitada do que é oferecido aos usuários de primeira classe.
terça-feira, 7 de maio de 2013
quinta-feira, 11 de abril de 2013
Na colônia penal
Ler Kafka é uma experiência que pode ser muito prazerosa, embora não deixe de apresentar, no mais das vezes, alguns grandes perigos. O prazer da imersão na obra kafkiana reside em sua maior riqueza, que é a de nos levar a sentir em nossa própria carne a brutalidade das situações descritas. O tipo de deleite que se tem nesse caso, contudo, não pertence à mesma categoria daqueles que se deliciam com a dor em si mesma; aqui, o leitor se depara com uma rara possibilidade de apreciação estética, de viver de modo hiperbólico o mal estar de ser humano.
Os perigos da jornada, por outro lado, também são grandes e numerosos. Primeiramente, um leitor incauto pode interpretar a resistência de Kafka em conceder a seus quase-personagens experiências redentoras como uma regra geral da vida: desse modo, seríamos conduzidos à crença quase que religiosa no fato de que todo prazer e todo o sentido que podemos encontrar em nossas melhores e piores vivências são, na verdade, pálidas e enganosas ilusões que construímos com o intuito de tornar nossa existência mais palatável. Enganar-se-ia quem assim pensasse: se, por um lado, essa constatação pode ser útil e verdadeira em alguns momentos, creio que nada pode ser mais mentiroso do que o encarceramento de toda e qualquer experiência nos moldes de uma interpretação unívoca. Nesse sentido, é possível – e, diria eu, necessário – experimentar as inescapáveis e angustiantes construções maquinais de Kafka em si mesmas, sem tomá-las como representantes de uma verdade absoluta.
Outra armadilha, com consequências menos severas – mas na qual um número muito grande de pessoas caiu –, é o de tomar a floresta de referências da obra kafkiana como um convite à superinterpretação. Tais superinterpretações, ao que me parece, tendem a expressar a paixão de alguns leitores por explicações teleológicas: muitas foram as tentativas de reduzir os escritos kafkianos a algum tipo de causalidade estrita. Uns tentaram enxergar todos os textos de Kafka como algum tipo de derivado da relação opressiva e conflituosa dele com seu pai - como se (caso vocês me permitam a caricatura) todas as máquinas reais ou metafóricas com as quais se deparam os heróis kafkianos fossem representações dessa relação. Outros entenderam Kafka como um autor que diagnosticava os males de seu tempo - a saber, o “desencantamento do mundo”. Nesse sentido, os protagonistas kafkianos representariam a angústia do homem comum diante da violenta impessoalidade e racionalidade das burocracias, que se recusam a fornecer explicações e, de certo modo, substituem a esfera do divino no que diz respeito à determinação dos destinos individuais. Em ambos os casos, a obra kafkiana é vista como uma espécie de sintoma: no primeiro caso, esse sintoma surge da forma peculiar com que foi moldada a psique do autor; no segundo, ela é vista como a causa direta do momento histórico que viveu Kafka. Desse segundo tipo de superinterpretação não-hermenêutica, aliás, surge uma outra, que poderíamos identificar como sócio-reducionista: nesse caso, tudo se passa como se tudo o que escreve o autor – qualquer autor, não apenas Kafka – fosse um resultado da soma de suas “relações sociais”, de sua “experiência de vida” e de sua posição dentro de um determinado “campo”.
Em seu texto sobre Kafka, Adorno reclama justamente desses tipos de interpretações. Embora eu também seja crítico com relação a essas perspectivas, eu não seria tão contundente quanto ele: penso que é possível construir múltiplas narrativas que atravessam os textos kafkianos, sem com isso realizar o movimento de resumir a obra e uma das trajetórias que ela permite. O caso, portanto, não é de esquecer a psicanálise ou a sociologia ao ler Kafka; mais do que isso, o leitor deve despir-se da arrogância típica do cientista e estabelecer um diálogo com a obra, percebendo os insights que ela talvez contenha.
Tendo mencionado, portanto, as linhas interpretativas que eu não seguirei, começo agora a esboçar minha leitura, tanto de Kafka quanto da novela que quero tratar – que é Na colônia penal. Inicio falando do estilo kafkiano, do modo particular com que o autor elaborou seus escritos.
Há autores que escrevem de modo a expulsar o leitor de dentro de seus textos, que o levam a refletir sobre coisas maiores ou menores do que aquilo que está escrito. Esse não é, certamente, o caso de Kafka: o jogo que ele nos convida a jogar não admite qualquer tipo de distração ou digressão. As primeiras linhas de seus textos – sobretudo de suas novelas e romances – podem ser enganosas, pois podem nos levar a crer que as imagens que nos são apresentadas carecem de elucidação. Contudo, a sequência das narrativas rapidamente desfaz essa ilusão: são tantas as imagens e os rastros e as trilhas que Kafka atira, uma atrás da outra, diante de nós – algumas de modo sutil, outras de modo brutal - que seria uma tarefa infinitamente enlouquecedora tentar desvendá-las uma a uma. Cabe ao leitor, portanto, resignar-se e seguir seu trajeto, com a sensação angustiante de que tudo é déja-vu - como diz Adorno.
O que resta, portanto, é a proximidade. Caso acompanhe o trajeto proposto por Kafka, o leitor deve deixar de ser leitor: ele deve tornar-se partícipe do drama. No início da apresentação, eu afirmei que Kafka não criou personagens, mas sim “quase-personagens”. O que pretendo dizer com isso é que todos os heróis, coadjuvantes e antagonistas kafkianos não passam de sombras, figurinos vazios à espera de seus atores. Ao ler Kafka, não nos deparamos com um universo habitado por personagens-tipo (ao estilo do realismo balzaquiano) e muito menos por seres aparentemente complexos, que refletem constantemente sobre si mesmos, sobre o que fazem e sobre o mundo que os cerca. O que se tem, ao contrário, é a simplicidade: todas as respostas e reações dadas são as mais óbvias e simples possíveis – respostas que qualquer um poderia dar. Esse é o início do segundo movimento de imersão a que Kafka obriga: ao nos apresentar personagens tão simples, ele nos incita a preencher com a nossa própria subjetividade algum dos figurinos que nos fornece.
A seguir, o figurino torna-se camisa de força. No caso de A colônia penal, por exemplo, perguntamo-nos o tempo todo por que o viajante não se rebela contra a máquina, posto que contava com o apreço do novo comandante e tinha condições para tanto. A situação, contudo, torna frívola a pergunta: o viajante não poderia fazer outra coisa que não apreciar o estranho – para dizer o mínimo - método de punição aplicado ao soldado rebelde. Era isso a que obrigava a etiqueta, já que o viajante era um forasteiro, alguém que não conhecia perfeitamente os costumes do lugar. Isso não impede que ele próprio – ou, no caso, o leitor – sinta aversão ao que observa; a situação torna-se assim absurdamente angustiante. Essa angústia dura até o momento em que o oficial que opera a máquina pressiona o viajante a opinar sobre seus métodos; contudo, mais uma vez a iniciativa da resposta não nos pertence. O alívio do protesto que leva ao suicídio do oficial não é completo, portanto: não se escolheu verbalizá-lo. O desconforto com essa situação se expressa no ato final do viajante, que não permite que o soldado raso que fora punido e nem o que auxiliava o oficial o acompanhem em sua viagem: que permaneçam na ilha todos os remanescentes de sua vergonha.
Outro traço primordial de Kafka é a literalidade. As imagens que ele expõe clamam por interpretação ao mesmo tempo em que são claras como a luz do dia: Gregor Samsa acorda inseto; a punição do criminoso é ter inscrito em sua pele, do modo mais doloroso e mortal possível, o próprio crime. É preciso aprofundar-se mais do que isso? A brutalidade e o absurdo da imagem passam pelo pensamento e se dirigem diretamente ao estômago. Apenas depois da difícil digestão é possível pensar, e com muita dificuldade; e o que resta do texto de Kafka, ao fim, não é um diagnóstico do mundo em que vivemos e nem tampouco um tratado sobre religião, moral ou o que quer que seja. O que sobra são as marcas da trajetória, um sentimento que leva a revisitar as próprias experiências. Os textos de Kafka são, portanto, como o manual de instruções que portava o oficial executor das penas: se alguns não conseguem superar seu caos aparente e interpretá-los, outros são capazes de nele enxergar o que bem entendem.
Os perigos da jornada, por outro lado, também são grandes e numerosos. Primeiramente, um leitor incauto pode interpretar a resistência de Kafka em conceder a seus quase-personagens experiências redentoras como uma regra geral da vida: desse modo, seríamos conduzidos à crença quase que religiosa no fato de que todo prazer e todo o sentido que podemos encontrar em nossas melhores e piores vivências são, na verdade, pálidas e enganosas ilusões que construímos com o intuito de tornar nossa existência mais palatável. Enganar-se-ia quem assim pensasse: se, por um lado, essa constatação pode ser útil e verdadeira em alguns momentos, creio que nada pode ser mais mentiroso do que o encarceramento de toda e qualquer experiência nos moldes de uma interpretação unívoca. Nesse sentido, é possível – e, diria eu, necessário – experimentar as inescapáveis e angustiantes construções maquinais de Kafka em si mesmas, sem tomá-las como representantes de uma verdade absoluta.
Outra armadilha, com consequências menos severas – mas na qual um número muito grande de pessoas caiu –, é o de tomar a floresta de referências da obra kafkiana como um convite à superinterpretação. Tais superinterpretações, ao que me parece, tendem a expressar a paixão de alguns leitores por explicações teleológicas: muitas foram as tentativas de reduzir os escritos kafkianos a algum tipo de causalidade estrita. Uns tentaram enxergar todos os textos de Kafka como algum tipo de derivado da relação opressiva e conflituosa dele com seu pai - como se (caso vocês me permitam a caricatura) todas as máquinas reais ou metafóricas com as quais se deparam os heróis kafkianos fossem representações dessa relação. Outros entenderam Kafka como um autor que diagnosticava os males de seu tempo - a saber, o “desencantamento do mundo”. Nesse sentido, os protagonistas kafkianos representariam a angústia do homem comum diante da violenta impessoalidade e racionalidade das burocracias, que se recusam a fornecer explicações e, de certo modo, substituem a esfera do divino no que diz respeito à determinação dos destinos individuais. Em ambos os casos, a obra kafkiana é vista como uma espécie de sintoma: no primeiro caso, esse sintoma surge da forma peculiar com que foi moldada a psique do autor; no segundo, ela é vista como a causa direta do momento histórico que viveu Kafka. Desse segundo tipo de superinterpretação não-hermenêutica, aliás, surge uma outra, que poderíamos identificar como sócio-reducionista: nesse caso, tudo se passa como se tudo o que escreve o autor – qualquer autor, não apenas Kafka – fosse um resultado da soma de suas “relações sociais”, de sua “experiência de vida” e de sua posição dentro de um determinado “campo”.
Em seu texto sobre Kafka, Adorno reclama justamente desses tipos de interpretações. Embora eu também seja crítico com relação a essas perspectivas, eu não seria tão contundente quanto ele: penso que é possível construir múltiplas narrativas que atravessam os textos kafkianos, sem com isso realizar o movimento de resumir a obra e uma das trajetórias que ela permite. O caso, portanto, não é de esquecer a psicanálise ou a sociologia ao ler Kafka; mais do que isso, o leitor deve despir-se da arrogância típica do cientista e estabelecer um diálogo com a obra, percebendo os insights que ela talvez contenha.
Tendo mencionado, portanto, as linhas interpretativas que eu não seguirei, começo agora a esboçar minha leitura, tanto de Kafka quanto da novela que quero tratar – que é Na colônia penal. Inicio falando do estilo kafkiano, do modo particular com que o autor elaborou seus escritos.
Há autores que escrevem de modo a expulsar o leitor de dentro de seus textos, que o levam a refletir sobre coisas maiores ou menores do que aquilo que está escrito. Esse não é, certamente, o caso de Kafka: o jogo que ele nos convida a jogar não admite qualquer tipo de distração ou digressão. As primeiras linhas de seus textos – sobretudo de suas novelas e romances – podem ser enganosas, pois podem nos levar a crer que as imagens que nos são apresentadas carecem de elucidação. Contudo, a sequência das narrativas rapidamente desfaz essa ilusão: são tantas as imagens e os rastros e as trilhas que Kafka atira, uma atrás da outra, diante de nós – algumas de modo sutil, outras de modo brutal - que seria uma tarefa infinitamente enlouquecedora tentar desvendá-las uma a uma. Cabe ao leitor, portanto, resignar-se e seguir seu trajeto, com a sensação angustiante de que tudo é déja-vu - como diz Adorno.
O que resta, portanto, é a proximidade. Caso acompanhe o trajeto proposto por Kafka, o leitor deve deixar de ser leitor: ele deve tornar-se partícipe do drama. No início da apresentação, eu afirmei que Kafka não criou personagens, mas sim “quase-personagens”. O que pretendo dizer com isso é que todos os heróis, coadjuvantes e antagonistas kafkianos não passam de sombras, figurinos vazios à espera de seus atores. Ao ler Kafka, não nos deparamos com um universo habitado por personagens-tipo (ao estilo do realismo balzaquiano) e muito menos por seres aparentemente complexos, que refletem constantemente sobre si mesmos, sobre o que fazem e sobre o mundo que os cerca. O que se tem, ao contrário, é a simplicidade: todas as respostas e reações dadas são as mais óbvias e simples possíveis – respostas que qualquer um poderia dar. Esse é o início do segundo movimento de imersão a que Kafka obriga: ao nos apresentar personagens tão simples, ele nos incita a preencher com a nossa própria subjetividade algum dos figurinos que nos fornece.
A seguir, o figurino torna-se camisa de força. No caso de A colônia penal, por exemplo, perguntamo-nos o tempo todo por que o viajante não se rebela contra a máquina, posto que contava com o apreço do novo comandante e tinha condições para tanto. A situação, contudo, torna frívola a pergunta: o viajante não poderia fazer outra coisa que não apreciar o estranho – para dizer o mínimo - método de punição aplicado ao soldado rebelde. Era isso a que obrigava a etiqueta, já que o viajante era um forasteiro, alguém que não conhecia perfeitamente os costumes do lugar. Isso não impede que ele próprio – ou, no caso, o leitor – sinta aversão ao que observa; a situação torna-se assim absurdamente angustiante. Essa angústia dura até o momento em que o oficial que opera a máquina pressiona o viajante a opinar sobre seus métodos; contudo, mais uma vez a iniciativa da resposta não nos pertence. O alívio do protesto que leva ao suicídio do oficial não é completo, portanto: não se escolheu verbalizá-lo. O desconforto com essa situação se expressa no ato final do viajante, que não permite que o soldado raso que fora punido e nem o que auxiliava o oficial o acompanhem em sua viagem: que permaneçam na ilha todos os remanescentes de sua vergonha.
Outro traço primordial de Kafka é a literalidade. As imagens que ele expõe clamam por interpretação ao mesmo tempo em que são claras como a luz do dia: Gregor Samsa acorda inseto; a punição do criminoso é ter inscrito em sua pele, do modo mais doloroso e mortal possível, o próprio crime. É preciso aprofundar-se mais do que isso? A brutalidade e o absurdo da imagem passam pelo pensamento e se dirigem diretamente ao estômago. Apenas depois da difícil digestão é possível pensar, e com muita dificuldade; e o que resta do texto de Kafka, ao fim, não é um diagnóstico do mundo em que vivemos e nem tampouco um tratado sobre religião, moral ou o que quer que seja. O que sobra são as marcas da trajetória, um sentimento que leva a revisitar as próprias experiências. Os textos de Kafka são, portanto, como o manual de instruções que portava o oficial executor das penas: se alguns não conseguem superar seu caos aparente e interpretá-los, outros são capazes de nele enxergar o que bem entendem.
sexta-feira, 18 de janeiro de 2013
Índios verdadeiros contra argumentos falsos
Quem acompanha o noticiário da cidade do Rio de Janeiro ou, pelo menos, acessa com alguma freqüência as redes sociais, deve ter tomado conhecimento da situação do prédio do antigo museu do índio, que se situa ao lado do estádio do Maracanã. Esse local já abrigou, desde a segunda metade do século XIX, diversas instituições ligadas ao estudo e à divulgação das culturas indígenas do Brasil, e tem uma ligação fundamental com a bandeira da defesa dos direitos dos chamados povos nativos.
Apesar de sua importância histórica, a construção encontra-se em péssimo estado de conservação – resultado de anos e anos de descaso do poder público que, inclusive, impediram seu tombamento pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) – e, com a aproximação dos mega-eventos esportivo que serão realizados na capital fluminense, o terreno voltou a ser alvo de interesse da prefeitura e do governo do estado. Segundo declarações recentes de representantes das duas administrações, o antigo museu do índio deverá ser demolido para a construção de um estacionamento – o que teria sido, inclusive, uma solicitação direta da entidade máxima do futebol mundial, a FIFA (isso foi prontamente desmentido pela instituição, causando uma situação embaraçosa). A questão ganha contornos ainda mais dramáticos quando temos em vista que desde o ano de 2006 um grupo de indígenas pertencentes a cerca de 20 etnias ocupou o terreno, utilizando-o como local de moradia e de manutenção de suas tradições.
A disputa está longe de se realizar em um terreno favorável à manutenção do prédio, sendo marcada por uma gritante assimetria de poder. De um lado, duas esferas do executivo, comandando batalhões de polícia e agindo em nome de interesses bilionários; de outro, um grupo de indígenas e militantes que têm pouco a que recorrer - afora a divulgação de informações nas redes sociais e a crença na boa fé dos três Poderes. Tal assimetria se torna ainda mais gritante se levamos em consideração a constante campanha difamatória realizada pelos grandes meios de comunicação, que não perdem uma oportunidade sequer de tratar de maneira jocosa, mentirosa e sensacionalista a luta da Aldeia Maracanã. Esse é, aliás, o tratamento geralmente dado pela imprensa brasileira ao tema da causa indígena em todo o país.
Este texto é uma tentativa de constituir uma perspectiva diferente daquela que vem sendo exposta por aqueles veículos de comunicação e – a meu ver, infelizmente -reproduzida por muitas pessoas. Embora eu esteja muito longe de ser um etnólogo especializado nos chamados povos ameríndios, gostaria de mostrar o posicionamento de um leigo que teve a oportunidade de ler algumas coisas que, talvez, forneçam a possibilidade de uma leitura diferente dos acontecimentos acima descritos. Não encaminho aqui nenhum argumento de autoridade; meu desejo é pura e simplesmente expor uma opinião, à qual estou disposto a rever se for o caso. Dessa maneira, caso você não esteja minimamente inclinado a estabelecer um diálogo com o que apresento, sugiro que evite as úlceras e retorne às revistas, jornais, programas televisivos e blogues que espelham melhor a sua visão de mundo.
A título de exemplo, observemos esta educativa matéria publicada no site da revista Veja (afinal, mesmo o mais retumbante dos equívocos possui um profundo valor pedagógico). O texto já parte de uma descrição que tenta mostrar ao leitor a distância do modo de vida dos habitantes da Aldeia Maracanã do estereótipo clássico que se atribui ao indígena: eles mascam chiclete e usam tênis Nike. Esse tipo de imagem, recorrente em toda a argumentação, busca demonstrar - de modo não tão sutil – que não há índios de verdade ali, e que as pessoas que ocupam o terreno são oportunistas fazendo-se valer de uma suposta pertença étnica para adquirir algum tipo de vantagem.
(O teor implícito do artigo citado, aliás, é reprodução de algo que também está presente em outra matéria, a famigerada A farra da antropologia oportunista. Esse texto ganhou grande repercussão, entre outras coisas, por ter – ao que tudo indica – falsificado uma citação do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que respondeu de maneira elucidativa aos editores do veículo. Pelo que parece, porém, eles não estão lá muito dispostos à revisão de seus princípios.)
Os pressupostos dessa teoria (sic) que considera legítimos apenas os povos indígenas que mantêm suas ‘raízes’ são totalmente esdrúxulos e ultrapassados. Em primeiro lugar, tal retórica simplesmente se esquece do pequeno detalhe que foram os [quase] 513 anos de sistemática eliminação dos chamados povos originários das Américas. Reduzidos a uma ínfima porcentagem da população que residia no continente à época da invasão européia, os indígenas tiveram forçosamente de se integrar à sociedade que se instalou aqui desde então – perdendo não por escolha, mas por necessidade e imposição, boa parte de seus traços ditos “originais”.
Em segundo lugar, ela apresenta a ideia de que grupos sociais, culturais ou étnicos que realizam trocas simbólicas e materiais com outras sociedades próximas ou que os englobam (como é o caso dos indígenas brasileiros) perdem sua “autenticidade” – perdendo, portanto, a prerrogativa do encaminhamento de demandas de cunho político-cultural. Índio que assiste tevê e usa calça jeans não pode ter direito à terra, dizem os que professam o pensamento defendido pela revista Veja e seus similares; desse modo, esquece-se que nenhuma sociedade vive em completo isolamento com relação às demais, e que mesmo as características culturais vistas como “essenciais” de um determinado grupo são forjadas em um trabalho de diferenciação que, por um lado, define quais daquelas características são centrais e, por outro, delimita as fronteiras daquele mesmo grupo. Desse modo, o contato e a troca culturais não são necessariamente momentos de “perda de identidade” (seja lá o que essa teorização obscura entenda por identidade), mas sim acontecimentos que atravessam a história de todas as sociedades humanas, desempenhando o mais importante papel na construção e na reconstrução das mesmas (1).
Por fim, vem o ponto que considero mais importante: não cabe à revista Veja, ao governo ou a qualquer outra pessoa que não os indígenas definir se a tribo é “verdadeiramente indígena” ou não. O direito à autodeterminação dos povos – um dos mais básicos que existem – não deve ser substituído pela existência de “tribunais” (oficiais ou não, institucionalizados ou não) que, alegando a defesa de critérios objetivos, dêem a si mesmos a função de determinar quem é e quem não é índio, quilombola, etc. O ato de estabelecer critérios empíricos para a delimitação das etnias é algo que remonta aos momentos mais terríveis de nossa história recente, e mesmo suas mais incertas sombras devem ser combatidas com vigor.
P.S.: Para uma defesa contundente da legitimidade da ocupação Aldeia Maracanã, ver http://revistaforum.com.br/blog/2013/01/a-aldeia-maracana-e-dos-indios-diz-antropologo/
Nota:
(1)Para maiores – e melhores – esclarecimentos sobre definição apresentada, ver:
BARTH, Fredrick (org). (1969), Ethnic groups and boundaries: the social organization of culture difference. Oslo, Johansen & Nielsen Boktrykeri
OLIVEIRA, Roberto Cardoso. 2000. “Os (Des)caminhos da Identidade”, In Revista Brasileira de. Ciências Sociais, Fevereiro,Vol.15, n.42,
Apesar de sua importância histórica, a construção encontra-se em péssimo estado de conservação – resultado de anos e anos de descaso do poder público que, inclusive, impediram seu tombamento pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) – e, com a aproximação dos mega-eventos esportivo que serão realizados na capital fluminense, o terreno voltou a ser alvo de interesse da prefeitura e do governo do estado. Segundo declarações recentes de representantes das duas administrações, o antigo museu do índio deverá ser demolido para a construção de um estacionamento – o que teria sido, inclusive, uma solicitação direta da entidade máxima do futebol mundial, a FIFA (isso foi prontamente desmentido pela instituição, causando uma situação embaraçosa). A questão ganha contornos ainda mais dramáticos quando temos em vista que desde o ano de 2006 um grupo de indígenas pertencentes a cerca de 20 etnias ocupou o terreno, utilizando-o como local de moradia e de manutenção de suas tradições.
A disputa está longe de se realizar em um terreno favorável à manutenção do prédio, sendo marcada por uma gritante assimetria de poder. De um lado, duas esferas do executivo, comandando batalhões de polícia e agindo em nome de interesses bilionários; de outro, um grupo de indígenas e militantes que têm pouco a que recorrer - afora a divulgação de informações nas redes sociais e a crença na boa fé dos três Poderes. Tal assimetria se torna ainda mais gritante se levamos em consideração a constante campanha difamatória realizada pelos grandes meios de comunicação, que não perdem uma oportunidade sequer de tratar de maneira jocosa, mentirosa e sensacionalista a luta da Aldeia Maracanã. Esse é, aliás, o tratamento geralmente dado pela imprensa brasileira ao tema da causa indígena em todo o país.
Este texto é uma tentativa de constituir uma perspectiva diferente daquela que vem sendo exposta por aqueles veículos de comunicação e – a meu ver, infelizmente -reproduzida por muitas pessoas. Embora eu esteja muito longe de ser um etnólogo especializado nos chamados povos ameríndios, gostaria de mostrar o posicionamento de um leigo que teve a oportunidade de ler algumas coisas que, talvez, forneçam a possibilidade de uma leitura diferente dos acontecimentos acima descritos. Não encaminho aqui nenhum argumento de autoridade; meu desejo é pura e simplesmente expor uma opinião, à qual estou disposto a rever se for o caso. Dessa maneira, caso você não esteja minimamente inclinado a estabelecer um diálogo com o que apresento, sugiro que evite as úlceras e retorne às revistas, jornais, programas televisivos e blogues que espelham melhor a sua visão de mundo.
A título de exemplo, observemos esta educativa matéria publicada no site da revista Veja (afinal, mesmo o mais retumbante dos equívocos possui um profundo valor pedagógico). O texto já parte de uma descrição que tenta mostrar ao leitor a distância do modo de vida dos habitantes da Aldeia Maracanã do estereótipo clássico que se atribui ao indígena: eles mascam chiclete e usam tênis Nike. Esse tipo de imagem, recorrente em toda a argumentação, busca demonstrar - de modo não tão sutil – que não há índios de verdade ali, e que as pessoas que ocupam o terreno são oportunistas fazendo-se valer de uma suposta pertença étnica para adquirir algum tipo de vantagem.
(O teor implícito do artigo citado, aliás, é reprodução de algo que também está presente em outra matéria, a famigerada A farra da antropologia oportunista. Esse texto ganhou grande repercussão, entre outras coisas, por ter – ao que tudo indica – falsificado uma citação do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que respondeu de maneira elucidativa aos editores do veículo. Pelo que parece, porém, eles não estão lá muito dispostos à revisão de seus princípios.)
Os pressupostos dessa teoria (sic) que considera legítimos apenas os povos indígenas que mantêm suas ‘raízes’ são totalmente esdrúxulos e ultrapassados. Em primeiro lugar, tal retórica simplesmente se esquece do pequeno detalhe que foram os [quase] 513 anos de sistemática eliminação dos chamados povos originários das Américas. Reduzidos a uma ínfima porcentagem da população que residia no continente à época da invasão européia, os indígenas tiveram forçosamente de se integrar à sociedade que se instalou aqui desde então – perdendo não por escolha, mas por necessidade e imposição, boa parte de seus traços ditos “originais”.
Em segundo lugar, ela apresenta a ideia de que grupos sociais, culturais ou étnicos que realizam trocas simbólicas e materiais com outras sociedades próximas ou que os englobam (como é o caso dos indígenas brasileiros) perdem sua “autenticidade” – perdendo, portanto, a prerrogativa do encaminhamento de demandas de cunho político-cultural. Índio que assiste tevê e usa calça jeans não pode ter direito à terra, dizem os que professam o pensamento defendido pela revista Veja e seus similares; desse modo, esquece-se que nenhuma sociedade vive em completo isolamento com relação às demais, e que mesmo as características culturais vistas como “essenciais” de um determinado grupo são forjadas em um trabalho de diferenciação que, por um lado, define quais daquelas características são centrais e, por outro, delimita as fronteiras daquele mesmo grupo. Desse modo, o contato e a troca culturais não são necessariamente momentos de “perda de identidade” (seja lá o que essa teorização obscura entenda por identidade), mas sim acontecimentos que atravessam a história de todas as sociedades humanas, desempenhando o mais importante papel na construção e na reconstrução das mesmas (1).
Por fim, vem o ponto que considero mais importante: não cabe à revista Veja, ao governo ou a qualquer outra pessoa que não os indígenas definir se a tribo é “verdadeiramente indígena” ou não. O direito à autodeterminação dos povos – um dos mais básicos que existem – não deve ser substituído pela existência de “tribunais” (oficiais ou não, institucionalizados ou não) que, alegando a defesa de critérios objetivos, dêem a si mesmos a função de determinar quem é e quem não é índio, quilombola, etc. O ato de estabelecer critérios empíricos para a delimitação das etnias é algo que remonta aos momentos mais terríveis de nossa história recente, e mesmo suas mais incertas sombras devem ser combatidas com vigor.
P.S.: Para uma defesa contundente da legitimidade da ocupação Aldeia Maracanã, ver http://revistaforum.com.br/blog/2013/01/a-aldeia-maracana-e-dos-indios-diz-antropologo/
Nota:
(1)Para maiores – e melhores – esclarecimentos sobre definição apresentada, ver:
BARTH, Fredrick (org). (1969), Ethnic groups and boundaries: the social organization of culture difference. Oslo, Johansen & Nielsen Boktrykeri
OLIVEIRA, Roberto Cardoso. 2000. “Os (Des)caminhos da Identidade”, In Revista Brasileira de. Ciências Sociais, Fevereiro,Vol.15, n.42,
sexta-feira, 7 de setembro de 2012
história
Mal surgia a espécie humana na África e, inquieta, se queria deslocar para a Europa da era glacial. Partiu, e ao chegar onde desejava não encontrou a terra inóspita que provavelmente esperava; tinha diante de si tribos e mais tribos de homúnculos primitivos e peludos, há muito separados do homo sapiens pela evolução.
A princípio houve confusão, posto que ambos os grupos não sabiam muito bem o que achar um do outro. Evitaram-se, mas a paz tensa pouco durou: logo fez-se a guerra entre as duas espécies, e a expansão humana ampliou suas fronteiras até eliminar o adversário.
sexta-feira, 22 de junho de 2012
O perigoso advento da babaquice
Não creio que seja problemático o fato de existirem babacas. Tampouco acredito que lhes deva ser vedado o direito da expressão pública de suas babaquices – afinal, diz-se que faz parte da essência mesma do ser-babaca o desejo incontrolável de despejar suas merdas no mundo. E iria eu mais longe: estou convicto de que uma possível interdição institucionalizada dirigida à babaquice consistiria em grave ataque aos direitos humanos mais fundamentais, posto que, conforme expressam cuidadosos estudos, recalcar babaquice pode gerar graves enfermidades - físicas e mentais - no babaca.
O que me chama a atenção, o que realmente me preocupa, é que a babaquice vem sofrendo um alarmante processo de desbabaquização: se antigamente ela era ouvida com uma irritada condescendência por parte do público não-babaca, os últimos anos vêm registrando o crescimento de vastos grupos que se constituem ao redor de certos babacas - grupos esses compostos por pessoas que, cada vez mais, tendem à reprodução instantânea e epidêmica da babaquice da vez.
terça-feira, 6 de março de 2012
Domingos ensolarados
Para narrar o momento em que me tornei ateu, não preciso mencionar o dia em que tive acesso aos elevados conhecimentos da astrofísica, da biologia, da química. Devo dizer, aliás, que nenhum desses temas me é familiar até hoje.
Também não contarei, aqui, as peripécias de minha sabedoria prematura: não decidi viver sem deuses porque desde cedo me mostrei uma criatura brilhante e desconfiada, nascida com o questionar inscrito nos genes.
O que eu vou dizer é que meu ateísmo brotou dos domingos de manhã, no finzinho da minha infância. Recordo-me até hoje, com relativa clareza, do vestir-me com a roupa de ir à missa (nem muito arrumada, nem muito feia) no raiar dos dias santos. Lembro também da sensação ruim de perder belos sóis para ir à igreja, pra ouvir um padre que a família me ensinara a respeitar – muito embora eu não fizesse (e ainda não faça) muita ideia do que ele falava.
O estalo, por assim dizer, não foi exatamente nesse momento. Na verdade mesmo, “ateu” era coisa que sequer fazia parte do meu palavreado, até porque não costumam ensinar pra gente que dá pra viver se fé. A coisa se desenvolveu um pouco mais tarde pra mim, no meio da adolescência: além de meus pais nunca terem sido pessoas muito presentes em rituais religiosos, eu tive por essa época contato com a filosofia do Nietzsche. Eu li e reli esse respeitável senhor, até que notei algo que eu já havia percebido sem perceber: esse negócio de fé tende mesmo a roubar da gente a manhã do domingo ensolarado, a nos furtar o futebol, a nos exigir o sacrifício daquilo que nos apraz. Por que fazer isso, pensei eu? Por não encontrar resposta a essa indagação, aqui estou.
Também não contarei, aqui, as peripécias de minha sabedoria prematura: não decidi viver sem deuses porque desde cedo me mostrei uma criatura brilhante e desconfiada, nascida com o questionar inscrito nos genes.
O que eu vou dizer é que meu ateísmo brotou dos domingos de manhã, no finzinho da minha infância. Recordo-me até hoje, com relativa clareza, do vestir-me com a roupa de ir à missa (nem muito arrumada, nem muito feia) no raiar dos dias santos. Lembro também da sensação ruim de perder belos sóis para ir à igreja, pra ouvir um padre que a família me ensinara a respeitar – muito embora eu não fizesse (e ainda não faça) muita ideia do que ele falava.
O estalo, por assim dizer, não foi exatamente nesse momento. Na verdade mesmo, “ateu” era coisa que sequer fazia parte do meu palavreado, até porque não costumam ensinar pra gente que dá pra viver se fé. A coisa se desenvolveu um pouco mais tarde pra mim, no meio da adolescência: além de meus pais nunca terem sido pessoas muito presentes em rituais religiosos, eu tive por essa época contato com a filosofia do Nietzsche. Eu li e reli esse respeitável senhor, até que notei algo que eu já havia percebido sem perceber: esse negócio de fé tende mesmo a roubar da gente a manhã do domingo ensolarado, a nos furtar o futebol, a nos exigir o sacrifício daquilo que nos apraz. Por que fazer isso, pensei eu? Por não encontrar resposta a essa indagação, aqui estou.
quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012
O Leopardo de Visconti: uma lição para as ciências sociais
Não é segredo para ninguém que o campo das ciências sociais é atravessado por polêmicas que o acompanham desde o seu surgimento. A maioria dessas polêmicas tende a alcançar níveis cada vez maiores de complexidade teórica: se, por um lado, novas perspectivas e até mesmo revisões da literatura existente na área aumentam progressivamente de quantidade, por outro os paradigmas nunca se substituem de fato – e o que acontece de fato é a riquíssima coexistência de infindáveis correntes teóricas que iluminam com múltiplas cores o mundo social. Se isso é a maior riqueza das ciências sociais, devemos considerar também seus possíveis efeitos perversos. E o principal deles, a meu ver, origina-se de uma inexplicável tendência dos acadêmicos da área, que costumam encaixar todos os modos de pensamento em esquemas simples de oposição - como se certas correntes fossem absolutamente irreconciliáveis e afastadas umas entre as outras.
Uma dessas falsas oposições encontra-se na suposta escolha que se deve fazer entre uma leitura estruturalista ou outra individualista do mundo social. Até certo momento tudo indicava isto: que o cientista social deveria se situar ou ao lado dos que têm o agente, sua racionalidade intrínseca e sua interação com outros agentes semelhantes como ponto de partida analítico, ou ele se situaria ao lado daqueles que acreditam no primado das estruturas sobre os agentes – tomando as sociedades como sistemas dotados de regras que formatariam, dessa ou daquela maneira, a ação cotidiana. Mais tarde, ainda surgiram autores que buscaram introduzir uma terceira via de interpretação do universo humano, situando-se em algum ponto entre individualismo metodológico e estruturalismo. Com isso, geraram novos pontos de vista que foram polemizados e tragados pela dinâmica peculiar das ciências humanas, sendo em certos momentos acusados por pertencerem a um ou outro lado da oposição pressuposta ou de terem constituído a síntese de maneira equivocada.
A meu ver, tanto aqueles situados nos pólos da oposição quanto os conciliadores estão errados em suas posturas. Os primeiros se enganam por apostarem em uma oposição que não me parece verdadeira, e os demais se enganam pelo mesmo motivo: em sua tentativa conciliadora, têm como pressuposta a possibilidade de se situarem em uma falsa ligação.
A denúncia da falsa oposição surge, segundo me parece, de um lugar um tanto quanto insuspeito: a arte – que apresenta a estranha característica de se colocar, muitas vezes, entre a subjetividade e a objetividade, entre a expressão do lado mais íntimo do ser e a estrutura. Principalmente no cinema e na literatura, artistas conseguiram encontrar um ponto em que estrutura e agente se encontram, em narrativas ricas que abordam múltiplos aspectos da existência.
O filme O Leopardo, do fantástico diretor italiano Lucchino Visconti (a meu ver, o melhor cineasta que já existiu) demonstra claramente essa possibilidade alcançada pela arte. Visconti foi capaz de descrever, de maneira primorosa, uma situação complexa em seu duplo aspecto: de um lado, mostra o colapso estrutural de toda uma sociedade, de todo um modo de estar no mundo; ao mesmo tempo, é capaz de descrever essa mudança de uma forma extremamente sensível subjetiva, demonstrando as mudanças de mentalidades e valores que deram sustentação ao ostracismo das nobrezas européias. A narrativa, em momento algum, cede à preguiça de escolher um dos dois vieses: ela caminha em uma linha tênue, na qual o espectador é capaz de apreciar ambos os lados da mesma experiência social.
Imagino ser possível que os cientistas sociais atinjam um nível de descrição semelhante, desde que abandonem a falsa oposição da qual falei. Não farão isso, certamente, construindo um lugar teórico normativo, supostamente situado entre dois pólos contrários: ao procederem assim, apenas produzirão novos construtos passíveis de serem encaixados em novas correlações enganosas. A postura do investigador social deve ser próxima, portanto, à de Visconti: ele deve estar ciente que sua obra é uma narrativa referente ao mundo real, e que, portanto, deve abranger uma pequena medida da complexidade dele. Deve, portanto, construir seu trabalho de forma delicada e cuidadosa, inserindo aqui e ali pinceladas da experiência coletiva e da experiência individual. Isso certamente seria difícil, na medida em que exigiria do pesquisador uma sensibilidade adquirida apenas com muito treino. A sorte, porém, é que em momento algum alguém disse que estudar ciências sociais seria fácil.
Uma dessas falsas oposições encontra-se na suposta escolha que se deve fazer entre uma leitura estruturalista ou outra individualista do mundo social. Até certo momento tudo indicava isto: que o cientista social deveria se situar ou ao lado dos que têm o agente, sua racionalidade intrínseca e sua interação com outros agentes semelhantes como ponto de partida analítico, ou ele se situaria ao lado daqueles que acreditam no primado das estruturas sobre os agentes – tomando as sociedades como sistemas dotados de regras que formatariam, dessa ou daquela maneira, a ação cotidiana. Mais tarde, ainda surgiram autores que buscaram introduzir uma terceira via de interpretação do universo humano, situando-se em algum ponto entre individualismo metodológico e estruturalismo. Com isso, geraram novos pontos de vista que foram polemizados e tragados pela dinâmica peculiar das ciências humanas, sendo em certos momentos acusados por pertencerem a um ou outro lado da oposição pressuposta ou de terem constituído a síntese de maneira equivocada.
A meu ver, tanto aqueles situados nos pólos da oposição quanto os conciliadores estão errados em suas posturas. Os primeiros se enganam por apostarem em uma oposição que não me parece verdadeira, e os demais se enganam pelo mesmo motivo: em sua tentativa conciliadora, têm como pressuposta a possibilidade de se situarem em uma falsa ligação.
A denúncia da falsa oposição surge, segundo me parece, de um lugar um tanto quanto insuspeito: a arte – que apresenta a estranha característica de se colocar, muitas vezes, entre a subjetividade e a objetividade, entre a expressão do lado mais íntimo do ser e a estrutura. Principalmente no cinema e na literatura, artistas conseguiram encontrar um ponto em que estrutura e agente se encontram, em narrativas ricas que abordam múltiplos aspectos da existência.
O filme O Leopardo, do fantástico diretor italiano Lucchino Visconti (a meu ver, o melhor cineasta que já existiu) demonstra claramente essa possibilidade alcançada pela arte. Visconti foi capaz de descrever, de maneira primorosa, uma situação complexa em seu duplo aspecto: de um lado, mostra o colapso estrutural de toda uma sociedade, de todo um modo de estar no mundo; ao mesmo tempo, é capaz de descrever essa mudança de uma forma extremamente sensível subjetiva, demonstrando as mudanças de mentalidades e valores que deram sustentação ao ostracismo das nobrezas européias. A narrativa, em momento algum, cede à preguiça de escolher um dos dois vieses: ela caminha em uma linha tênue, na qual o espectador é capaz de apreciar ambos os lados da mesma experiência social.
Imagino ser possível que os cientistas sociais atinjam um nível de descrição semelhante, desde que abandonem a falsa oposição da qual falei. Não farão isso, certamente, construindo um lugar teórico normativo, supostamente situado entre dois pólos contrários: ao procederem assim, apenas produzirão novos construtos passíveis de serem encaixados em novas correlações enganosas. A postura do investigador social deve ser próxima, portanto, à de Visconti: ele deve estar ciente que sua obra é uma narrativa referente ao mundo real, e que, portanto, deve abranger uma pequena medida da complexidade dele. Deve, portanto, construir seu trabalho de forma delicada e cuidadosa, inserindo aqui e ali pinceladas da experiência coletiva e da experiência individual. Isso certamente seria difícil, na medida em que exigiria do pesquisador uma sensibilidade adquirida apenas com muito treino. A sorte, porém, é que em momento algum alguém disse que estudar ciências sociais seria fácil.
terça-feira, 29 de novembro de 2011
Sobre Belo Monte
Ou: qual é o Brasil que queremos?
Nos últimos meses, vêm se intensificando os debates que cercam um dos mais polêmicos projetos de engenharia da história do Brasil, a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. Com o avanço da discussão, vão se sofisticando os argumentos tanto dos que defendem o projeto quanto dos que o atacam, e mais pessoas vão se engajando no embate. Eu venho acompanhando a questão há algum tempo, e comecei a perceber sua importância, principalmente, quando passei a apreciar as posições do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (um dos principais nomes da militância anti-Belo Monte, um dos mais importantes antropólogos do mundo) sobre o assunto.
Por questões “ideológicas” (que Althusser me desculpe por utilizar o termo tão levianamente), eu tendo a ser contrário a qualquer empreendimento que venha a alterar radicalmente a vida de um conjunto de pessoas sem que tal empreendimento esteja ligado a uma melhoria real, direta e substancial dessas vidas. Além do mais, não costumo me deixar comover pelo fetichismo frio dos números: pouco me importa se 10 famílias serão deslocadas para a construção de uma via ou se milhares serão desalojadas para que uma determinada cidade faça papel de civilizada diante do resto do mundo. Na minha opinião, o que importa no fim das contas é que o projeto traga benefícios reais para todas as partes envolvidas.
Apesar desse meu pendor, resolvi acompanhar a argumentação daqueles que se colocam a favor da construção de Belo Monte. Evidentemente, encontrei um ou outro mau-caráter que diminuiu aqui e ali o número de pessoas afetadas pelo projeto, e um ou outro malandro que escondeu esse ou aquele efeito perverso da obra. Isso, porém, não me surpreende; afinal, em qualquer embate ligado a uma questão tão importante e estratégica haverá, em ambos os lados, grupos (que podem ser maiores ou menores) de pessoas dispostas a trocar os dados reais por aqueles que mais lhes convêm. Deixando de lado esse tipo de discurso, guardei para mim apenas as perspectivas que me pareceram legítimas, sinceras e objetivas.
E continuei sendo contra Belo Monte.
A maioria dos defensores e detratores da construção da usina apresentam números, dados sobre impactos ambientais e, principalmente, questões relativas à eficiência do empreendimento na produção de energia elétrica. Nesse último ponto, aliás, tive a leiga impressão de que o lado dos defensores tem argumentado um pouco melhor do que o lado dos detratores.
Entretanto, esse tipo de argumentação ligado a termos como “eficiência”, “número de pessoas afetadas reduzido”, “danos ambientais menores do que outros tipos de produção de energia” não me convence nem um pouco. Explico por quê.
Independentemente do fato de a usina produzir essa ou aquela quantidade de energia por ano, independentemente de Belo Monte ser uma hidrelétrica e, portanto, menos impactante em termos ambientais do que uma usina que queima combustível para produzir energia, há uma lógica absolutamente perversa que subjaz sua realização. Essa lógica perversa diz respeito a um modo de encarar e de produzir o mundo, em que pessoas historicamente destituídas de qualquer possibilidade de acesso a serviços ou de vantagens mínimas são completamente ignoradas na hora de traçar um determinado projeto. No Brasil, os povos indígenas são os mais claros e extremos exemplos – mas de forma alguma os únicos - da reificação dessa lógica: constantemente são deles exigidas mudanças radicais em seus modos de vida (isso quando eles não são encarados como simples empecilhos e são cruelmente exterminados) para que a marcha austera e impiedosa do progresso se realize - organizada do alto da prancheta dos engenheiros, economistas e burocratas “racionais”, os quais dizem sempre que estão fazendo o que é mais necessário e adequado.
Alguém talvez argumente que os benefícios de um empreendimento desse tamanho são mais relevantes do que seus impactos. Ao que eu pergunto: benefícios para quem? Será que, de fato, a vida da população como um todo será melhorada com a construção da usina? Ou será que uma imensa parte energia produzida por Belo Monte será, como uma imensa parte da energia produzida por tantas outras usinas pelo Brasil, utilizada nos altos fornos das multinacionais produtoras de alumínio (ou de qualquer outra coisa)?
Além disso: por que grupos historicamente esquecidos pelo Estado têm de sofrer para que a sociedade urbana continue com seus padrões insanos de consumo de energia elétrica? Afinal, todo mundo acha que certos segmentos da sociedade – que são sempre os mesmos: índios, negros pobres, etc., etc., etc. - são obrigados a se sacrificarem em prol do bem estar da Nação – leia-se: em prol do bem-estar das classes médias e altas; entretanto, ninguém está disposto a fazer qualquer tipo de esforço para diminuir um pouco o seu próprio consumo de energia (a não ser, evidentemente, que o valor da conta de luz cresça demais), a trocar o sistema elétrico ineficiente da própria casa, a pressionar o governo para que ele subsidie a compra, por particulares, de painéis de energia solar. Do mesmo modo, o setor industrial privado, consumidor de imensa parcela da produção de eletricidade no Brasil, não está nem um pouco disposto a investir no desenvolvimento de novas tecnologias energéticas e muito menos a adotar ele mesmo técnicas de produção de energia menos impactantes sócio-ambientalmente: como esse tipo de investimento demanda aplicação do lucro das empresas – essa entidade sagrada que, em nome dos santos acionistas, não pode nunca, em hipótese alguma, diminuir -, a opção mais fácil é pressionar o Estado para que ele próprio invista em infra-estrutura. Afinal, como bem percebeu Poulantzas, é para isto (entre outras coisas) que o Estado serve: para fazer aquelas coisas que o capitalista não quer fazer, mas que ele precisa que alguém faça.
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Após colocar minha opinião sobre a usina de Belo Monte, gostaria de discutir muito rapidamente algo um tanto mais “abstrato”.
A meu ver, junto com o crescimento da importância econômica e geopolítica do Brasil, veio um problema gigantesco: o problema de decidir os rumos de nosso crescimento, de nosso desenvolvimento.
Estamos crescendo? Sem dúvida, e, diga-se de passagem, “como nunca antes na história desse país” - como diria o maior presidente que a história desse país já viu. E um sintoma disso é o fato de já termos problemas de país desenvolvido: atraímos um número cada vez maior de imigrantes ilegais, que são utilizados de maneira ilícita e desumana como mão-obra escrava ou semi-escrava (ou são tratados como lixo nas nossas cidades de fronteira); já temos ocupações militares fora de nossas fronteiras cuja legitimidade é questionada pelas populações por ela afetadas; e já exportamos o ônus que o suprimento de nossas necessidades acarreta. Observe os Estado Unidos e a única coisa que muda é a escala em que essas coisas acontecem por lá.
Entretanto, como em outros momentos da vida humana, a questão não é unicamente de tamanho: devemos nos preocupar com a forma com que nos valemos de nosso tamanho e de nosso crescimento. É esta a escolha que se coloca: ou construiremos um país desigual que sacrifica, no altar dos deuses do capitalismo, a população menos favorecida; ou construiremos um Brasil que promove a prosperidade de todos, que investe em educação, saúde, saneamento, etc..
Seja no alto Xingu, seja no Rio de Janeiro olímpico, é essa escolha que está em jogo em cada projeto, em cada orçamento, em cada decisão. E eu acredito que já tenha passado da hora de as discussões ligadas a tais decisões serem colocadas em termos mais humanos.
Nos últimos meses, vêm se intensificando os debates que cercam um dos mais polêmicos projetos de engenharia da história do Brasil, a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. Com o avanço da discussão, vão se sofisticando os argumentos tanto dos que defendem o projeto quanto dos que o atacam, e mais pessoas vão se engajando no embate. Eu venho acompanhando a questão há algum tempo, e comecei a perceber sua importância, principalmente, quando passei a apreciar as posições do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (um dos principais nomes da militância anti-Belo Monte, um dos mais importantes antropólogos do mundo) sobre o assunto.
Por questões “ideológicas” (que Althusser me desculpe por utilizar o termo tão levianamente), eu tendo a ser contrário a qualquer empreendimento que venha a alterar radicalmente a vida de um conjunto de pessoas sem que tal empreendimento esteja ligado a uma melhoria real, direta e substancial dessas vidas. Além do mais, não costumo me deixar comover pelo fetichismo frio dos números: pouco me importa se 10 famílias serão deslocadas para a construção de uma via ou se milhares serão desalojadas para que uma determinada cidade faça papel de civilizada diante do resto do mundo. Na minha opinião, o que importa no fim das contas é que o projeto traga benefícios reais para todas as partes envolvidas.
Apesar desse meu pendor, resolvi acompanhar a argumentação daqueles que se colocam a favor da construção de Belo Monte. Evidentemente, encontrei um ou outro mau-caráter que diminuiu aqui e ali o número de pessoas afetadas pelo projeto, e um ou outro malandro que escondeu esse ou aquele efeito perverso da obra. Isso, porém, não me surpreende; afinal, em qualquer embate ligado a uma questão tão importante e estratégica haverá, em ambos os lados, grupos (que podem ser maiores ou menores) de pessoas dispostas a trocar os dados reais por aqueles que mais lhes convêm. Deixando de lado esse tipo de discurso, guardei para mim apenas as perspectivas que me pareceram legítimas, sinceras e objetivas.
E continuei sendo contra Belo Monte.
A maioria dos defensores e detratores da construção da usina apresentam números, dados sobre impactos ambientais e, principalmente, questões relativas à eficiência do empreendimento na produção de energia elétrica. Nesse último ponto, aliás, tive a leiga impressão de que o lado dos defensores tem argumentado um pouco melhor do que o lado dos detratores.
Entretanto, esse tipo de argumentação ligado a termos como “eficiência”, “número de pessoas afetadas reduzido”, “danos ambientais menores do que outros tipos de produção de energia” não me convence nem um pouco. Explico por quê.
Independentemente do fato de a usina produzir essa ou aquela quantidade de energia por ano, independentemente de Belo Monte ser uma hidrelétrica e, portanto, menos impactante em termos ambientais do que uma usina que queima combustível para produzir energia, há uma lógica absolutamente perversa que subjaz sua realização. Essa lógica perversa diz respeito a um modo de encarar e de produzir o mundo, em que pessoas historicamente destituídas de qualquer possibilidade de acesso a serviços ou de vantagens mínimas são completamente ignoradas na hora de traçar um determinado projeto. No Brasil, os povos indígenas são os mais claros e extremos exemplos – mas de forma alguma os únicos - da reificação dessa lógica: constantemente são deles exigidas mudanças radicais em seus modos de vida (isso quando eles não são encarados como simples empecilhos e são cruelmente exterminados) para que a marcha austera e impiedosa do progresso se realize - organizada do alto da prancheta dos engenheiros, economistas e burocratas “racionais”, os quais dizem sempre que estão fazendo o que é mais necessário e adequado.
Alguém talvez argumente que os benefícios de um empreendimento desse tamanho são mais relevantes do que seus impactos. Ao que eu pergunto: benefícios para quem? Será que, de fato, a vida da população como um todo será melhorada com a construção da usina? Ou será que uma imensa parte energia produzida por Belo Monte será, como uma imensa parte da energia produzida por tantas outras usinas pelo Brasil, utilizada nos altos fornos das multinacionais produtoras de alumínio (ou de qualquer outra coisa)?
Além disso: por que grupos historicamente esquecidos pelo Estado têm de sofrer para que a sociedade urbana continue com seus padrões insanos de consumo de energia elétrica? Afinal, todo mundo acha que certos segmentos da sociedade – que são sempre os mesmos: índios, negros pobres, etc., etc., etc. - são obrigados a se sacrificarem em prol do bem estar da Nação – leia-se: em prol do bem-estar das classes médias e altas; entretanto, ninguém está disposto a fazer qualquer tipo de esforço para diminuir um pouco o seu próprio consumo de energia (a não ser, evidentemente, que o valor da conta de luz cresça demais), a trocar o sistema elétrico ineficiente da própria casa, a pressionar o governo para que ele subsidie a compra, por particulares, de painéis de energia solar. Do mesmo modo, o setor industrial privado, consumidor de imensa parcela da produção de eletricidade no Brasil, não está nem um pouco disposto a investir no desenvolvimento de novas tecnologias energéticas e muito menos a adotar ele mesmo técnicas de produção de energia menos impactantes sócio-ambientalmente: como esse tipo de investimento demanda aplicação do lucro das empresas – essa entidade sagrada que, em nome dos santos acionistas, não pode nunca, em hipótese alguma, diminuir -, a opção mais fácil é pressionar o Estado para que ele próprio invista em infra-estrutura. Afinal, como bem percebeu Poulantzas, é para isto (entre outras coisas) que o Estado serve: para fazer aquelas coisas que o capitalista não quer fazer, mas que ele precisa que alguém faça.
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Após colocar minha opinião sobre a usina de Belo Monte, gostaria de discutir muito rapidamente algo um tanto mais “abstrato”.
A meu ver, junto com o crescimento da importância econômica e geopolítica do Brasil, veio um problema gigantesco: o problema de decidir os rumos de nosso crescimento, de nosso desenvolvimento.
Estamos crescendo? Sem dúvida, e, diga-se de passagem, “como nunca antes na história desse país” - como diria o maior presidente que a história desse país já viu. E um sintoma disso é o fato de já termos problemas de país desenvolvido: atraímos um número cada vez maior de imigrantes ilegais, que são utilizados de maneira ilícita e desumana como mão-obra escrava ou semi-escrava (ou são tratados como lixo nas nossas cidades de fronteira); já temos ocupações militares fora de nossas fronteiras cuja legitimidade é questionada pelas populações por ela afetadas; e já exportamos o ônus que o suprimento de nossas necessidades acarreta. Observe os Estado Unidos e a única coisa que muda é a escala em que essas coisas acontecem por lá.
Entretanto, como em outros momentos da vida humana, a questão não é unicamente de tamanho: devemos nos preocupar com a forma com que nos valemos de nosso tamanho e de nosso crescimento. É esta a escolha que se coloca: ou construiremos um país desigual que sacrifica, no altar dos deuses do capitalismo, a população menos favorecida; ou construiremos um Brasil que promove a prosperidade de todos, que investe em educação, saúde, saneamento, etc..
Seja no alto Xingu, seja no Rio de Janeiro olímpico, é essa escolha que está em jogo em cada projeto, em cada orçamento, em cada decisão. E eu acredito que já tenha passado da hora de as discussões ligadas a tais decisões serem colocadas em termos mais humanos.
segunda-feira, 5 de setembro de 2011
Evangélicos e preconceitos
Hoje tratarei de um assunto que eu acho bastante polêmico. Esse meu achar, certamente, tem motivos subjetivos: pretendo falar de um preconceito para o qual eu próprio, por descuido ou por pura falta de tato mesmo, costumo escorregar.
Afirmemos logo de início o assunto do texto: tratarei aqui do preconceito de que, muitas vezes, são alvo as pessoas que fazem parte das chamadas religiões evangélicas – sobretudo as neopentecostais.
Antes de entrarmos na argumentação à qual pretendo conduzir, devo ser sincero para com meu leitor e explicar de onde digo o que digo: sou um ateu convicto, desde o momento em que comecei a refletir sobre mim mesmo e sobre o mundo que me cerca. Fui, porém, educado em meio a uma família mais ou menos católica – já que alguns elementos muito próximos são fervorosos praticantes dessa religião, enquanto outros tantos não dão muita bola pros assuntos de Deus. Além disso, diria que hoje sou uma pessoa avessa – tão avessa quanto me é possível ser - a qualquer doutrina dogmática e a qualquer tentativa de arrebanhamento do humano (li com muita atenção o Nietzsche, então não tinha como ser de outra forma).
Feito esse não tão breve preâmbulo, começo a falar o que quero falar.
Essa semana - mais precisamente hoje - tive acesso à seguinte informação: em termos religiosos, uns sessenta e tantos por cento da população brasileira se diz católica, uns vinte e tantos por cento se diz evangélica e os outros porcentos sobram para os ateus e praticantes de outras fés.
Obviamente, esses dados são crus pra cacete. Dizer apenas quem acredita em que – e de uma maneira tão genérica, que, por exemplo, não discrimina entre as inúmeras manifestações do protestantismo que têm lugar no Brasil – não dá, de forma alguma, uma visão clara das religiosidades praticadas em nosso país. Entretanto, mesmo tendo isso em vista, permiti a mim mesmo tirar algumas conclusões.
Primeiramente, gostaria de articular o percentual que (esdruxulamente, eu sei, mas to com preguiça de procurar os dados) apresentei com algumas, digamos, “tendências discursivas” que se colocam ao fazerem menção ao fenômeno neopentecostal. Por um lado, é notório o avanço do neopentecostalismo no Brasil. E, por outro lado, é igualmente evidente que a esmagadora maioria da população brasileira ainda é de fé católica.
Não entraremos, aqui, em questões teológicas, e nem tampouco faremos um esboço de sociologia da religião. O que eu quero chamar à atenção é um fato meio óbvio até: muito embora, como já disse, a maior parte da população ainda seja católica, quase todo o conservadorismo, ou se preferirem o “atraso” vem sendo, no discurso do senso comum, posto na conta dos evangélicos. Sendo assim, o próprio avanço do “fenômeno evangélico” é visto por muitos como um problema a ser combatido, como um monstro que vai crescendo e se estruturando para fundar um Brasil crente, obscurantista, conservador e ignorante – e que, no curto prazo, tende a entravar o desenvolvimento brasileiro por misturar política e religião.
Esse tipo de ponto de vista – o leitor deve concordar comigo – é comum. Piadas que atacam a “ignorância” dos evangélicos, que ridicularizam sua fé, que os tratam como títeres à mercê de vis manipuladores da fé alheia, são cada vez mais difundidas; por vezes, algumas pessoas identificam que a odienta Globo seria um mal menor, perto da Record do – também odiento – Bispo Macedo; e alguns intelectuais que se dizem não-conservadores também tendem a dizer que os evangélicos – e apenas eles – seriam responsáveis pelo entrave que se coloca diante da conquista de alguns direitos civis básicos (como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o aborto e a legalização das drogas).
Ora, é certo que há algum grau de verdade nisso tudo. Basta assistir na televisão os programas de alguns – não todos, deve-se frisar - segmentos das religiões evangélicas brasileiras para notar que grande parte delas veicula um discurso verdadeiramente obscurantista, desrespeitoso para com os adeptos de outra fé e/ou modo de vida, e que confundem o lugar da pregação religiosa. Entretanto, simultaneamente, eu penso: ainda há um grande contingente da população que pertence ao catolicismo; e, sendo assim, se “ser evangélico” é a variável que explica o conservadorismo brasileiro, como se explica o fato de a maior parte da população ser católica estar articulado a uma nação, a meu ver, crescentemente conservadora?
No meu modo ateu – e, portanto, nada imparcial - de entender as coisas, não há, em termos de tendência a “permitir” ou “aceitar” medidas mais “liberais”, muita diferença entre os evangélicos em geral e os católicos em geral – se fosse assim, não haveria tanta resistência por parte da sociedade em reconhecer alguns daqueles direitos civis básicos. Ao que parece, há na verdade um crescente e irrefletido preconceito (perdoem a tautologia) que se coloca entre as pessoas e uma leitura menos estigmatizante das religiões evangélicas.
Nesse sentido, percebo que, principalmente no Rio de Janeiro (estado onde as neopentecostais avançam a passos larguíssimos), alguns setores conservadores de classe média e alta relacionam os evangélicos aos pobres – ou, dizendo de outro modo, a representação que tais segmentos de classe têm dos evangélicos afirma que esses últimos são recrutados entre a população mais pobre; o que os torna, portanto, alvos de todos os preconceitos que possuem em relação aos pobres em geral. E assim ficam as coisas: como se conservadorismo, mistura de religião e política, ignorância política, fossem coisas que não dizem respeito às camadas medias e altas de nossa sociedade.
Minha opinião, para resumir, é que um preconceito relativo a origem sócio-econômica vem sendo cada vez mais transfigurado em um preconceito dirigido aos praticantes de uma certa fé. Esse preconceito tem alguma sustentação na realidade? Talvez, não sei dizer ao certo. Mas o que quero dizer é o seguinte: tem muita gente por aí achando que o problema são os outros, e acaba esquecendo de olhar para seus próprios valores.
Afirmemos logo de início o assunto do texto: tratarei aqui do preconceito de que, muitas vezes, são alvo as pessoas que fazem parte das chamadas religiões evangélicas – sobretudo as neopentecostais.
Antes de entrarmos na argumentação à qual pretendo conduzir, devo ser sincero para com meu leitor e explicar de onde digo o que digo: sou um ateu convicto, desde o momento em que comecei a refletir sobre mim mesmo e sobre o mundo que me cerca. Fui, porém, educado em meio a uma família mais ou menos católica – já que alguns elementos muito próximos são fervorosos praticantes dessa religião, enquanto outros tantos não dão muita bola pros assuntos de Deus. Além disso, diria que hoje sou uma pessoa avessa – tão avessa quanto me é possível ser - a qualquer doutrina dogmática e a qualquer tentativa de arrebanhamento do humano (li com muita atenção o Nietzsche, então não tinha como ser de outra forma).
Feito esse não tão breve preâmbulo, começo a falar o que quero falar.
Essa semana - mais precisamente hoje - tive acesso à seguinte informação: em termos religiosos, uns sessenta e tantos por cento da população brasileira se diz católica, uns vinte e tantos por cento se diz evangélica e os outros porcentos sobram para os ateus e praticantes de outras fés.
Obviamente, esses dados são crus pra cacete. Dizer apenas quem acredita em que – e de uma maneira tão genérica, que, por exemplo, não discrimina entre as inúmeras manifestações do protestantismo que têm lugar no Brasil – não dá, de forma alguma, uma visão clara das religiosidades praticadas em nosso país. Entretanto, mesmo tendo isso em vista, permiti a mim mesmo tirar algumas conclusões.
Primeiramente, gostaria de articular o percentual que (esdruxulamente, eu sei, mas to com preguiça de procurar os dados) apresentei com algumas, digamos, “tendências discursivas” que se colocam ao fazerem menção ao fenômeno neopentecostal. Por um lado, é notório o avanço do neopentecostalismo no Brasil. E, por outro lado, é igualmente evidente que a esmagadora maioria da população brasileira ainda é de fé católica.
Não entraremos, aqui, em questões teológicas, e nem tampouco faremos um esboço de sociologia da religião. O que eu quero chamar à atenção é um fato meio óbvio até: muito embora, como já disse, a maior parte da população ainda seja católica, quase todo o conservadorismo, ou se preferirem o “atraso” vem sendo, no discurso do senso comum, posto na conta dos evangélicos. Sendo assim, o próprio avanço do “fenômeno evangélico” é visto por muitos como um problema a ser combatido, como um monstro que vai crescendo e se estruturando para fundar um Brasil crente, obscurantista, conservador e ignorante – e que, no curto prazo, tende a entravar o desenvolvimento brasileiro por misturar política e religião.
Esse tipo de ponto de vista – o leitor deve concordar comigo – é comum. Piadas que atacam a “ignorância” dos evangélicos, que ridicularizam sua fé, que os tratam como títeres à mercê de vis manipuladores da fé alheia, são cada vez mais difundidas; por vezes, algumas pessoas identificam que a odienta Globo seria um mal menor, perto da Record do – também odiento – Bispo Macedo; e alguns intelectuais que se dizem não-conservadores também tendem a dizer que os evangélicos – e apenas eles – seriam responsáveis pelo entrave que se coloca diante da conquista de alguns direitos civis básicos (como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o aborto e a legalização das drogas).
Ora, é certo que há algum grau de verdade nisso tudo. Basta assistir na televisão os programas de alguns – não todos, deve-se frisar - segmentos das religiões evangélicas brasileiras para notar que grande parte delas veicula um discurso verdadeiramente obscurantista, desrespeitoso para com os adeptos de outra fé e/ou modo de vida, e que confundem o lugar da pregação religiosa. Entretanto, simultaneamente, eu penso: ainda há um grande contingente da população que pertence ao catolicismo; e, sendo assim, se “ser evangélico” é a variável que explica o conservadorismo brasileiro, como se explica o fato de a maior parte da população ser católica estar articulado a uma nação, a meu ver, crescentemente conservadora?
No meu modo ateu – e, portanto, nada imparcial - de entender as coisas, não há, em termos de tendência a “permitir” ou “aceitar” medidas mais “liberais”, muita diferença entre os evangélicos em geral e os católicos em geral – se fosse assim, não haveria tanta resistência por parte da sociedade em reconhecer alguns daqueles direitos civis básicos. Ao que parece, há na verdade um crescente e irrefletido preconceito (perdoem a tautologia) que se coloca entre as pessoas e uma leitura menos estigmatizante das religiões evangélicas.
Nesse sentido, percebo que, principalmente no Rio de Janeiro (estado onde as neopentecostais avançam a passos larguíssimos), alguns setores conservadores de classe média e alta relacionam os evangélicos aos pobres – ou, dizendo de outro modo, a representação que tais segmentos de classe têm dos evangélicos afirma que esses últimos são recrutados entre a população mais pobre; o que os torna, portanto, alvos de todos os preconceitos que possuem em relação aos pobres em geral. E assim ficam as coisas: como se conservadorismo, mistura de religião e política, ignorância política, fossem coisas que não dizem respeito às camadas medias e altas de nossa sociedade.
Minha opinião, para resumir, é que um preconceito relativo a origem sócio-econômica vem sendo cada vez mais transfigurado em um preconceito dirigido aos praticantes de uma certa fé. Esse preconceito tem alguma sustentação na realidade? Talvez, não sei dizer ao certo. Mas o que quero dizer é o seguinte: tem muita gente por aí achando que o problema são os outros, e acaba esquecendo de olhar para seus próprios valores.
terça-feira, 2 de agosto de 2011
Progresso e austeridade
Curioso é observar o quão próximas são às vezes idéias aparentemente contraditórias, como progresso e austeridade. Superficialmente, nada anuncia o parentesco de ambos os conceitos; entretanto, a verdade é que os dois representam – perdoem-me pelo lugar-comum - duas faces de uma mesma moeda.
Para desfazermos a ilusória diferença, devemos observar o contexto em que tais vocábulos são utilizados. Se progresso diz respeito, histórica e cotidianamente, a uma marcha à frente – sendo esse à frente, necessariamente, melhor do que aquilo que ficou para trás -, a outrora inocente austeridade tornou-se acompanhante recorrente da palavra "medida", formando assim a hoje mui pronunciada "medida de austeridade" - expressão que diz respeito a uma política econômica e social que (segundo dizem alguns) se faz necessária para que as nações mais fragilizadas pela atual crise do capitalismo não entrem em colapso.
Dito isso, o leitor deve estar a se perguntar: por que diabos progresso e austeridade seriam coisas semelhantes? Se o progresso – coisa boa, desejável – é a marcha à frente, a melhora, e as medidas de austeridade são as rígidas, sóbrias e racionais (porém necessárias) formas de combate à crise - coisa ruim, indesejável -, de que maneira tais coisas se aproximam?
Pois bem: é aqui que adentramos o ponto crucial da argumentação. Ao que me parece, há um princípio que atravessa tanto a exigência das medidas de austeridade quanto a marcha do progresso.
Para melhor explicar a idéia, analisemos as reais conseqüências do que é hoje entendido como progresso.
No Brasil, sempre houve – e ainda os há às pencas – aqueles que se denominam progressistas, e até governos, por aqui, se consideram e são alcunhados como tal. Mas, certamente, o progressismo brasileiro não é apenas um movimento de pessoas que andam para a frente – ou seja: não é definido pelo sentido abstrato, encontrado no dicionário, do termo progresso; ele é, antes de mais nada, um projeto político, social e econômico específico, e que tem e teve a intenção de fazer avançarem as forças produtivas, o consumo, a produção de bens de consumo industrializados, o aumento do PIB, etc.. Trocando em miúdos: o progresso, tal qual foi – e é – posto em prática em nosso país, é um progresso que se movimenta no terreno do modo de produção capitalista, desenvolvendo e aprofundando sua inserção por aqui.
O inconveniente do progresso, conforme é possível compreender se observamos a história de nosso país, é que a marcha adiante nunca se depara com um espaço vazio e homogêneo. Seus passos, para se realizarem, precisam remover inúmeros obstáculos; e ele é, para não perdermos a chance de uma boa metáfora, como que um desbravador de matas virgens e fechadas, que vai removendo à base de facão aquilo que se põe como problema. E aí está a chave para chegarmos à conclusão que desejamos: no mais das vezes, esses obstáculos são pessoas de carne e osso, homens, mulheres e crianças que atravessam o caminho dos empreendimentos progressistas. E, quando isso acontece... bem, pior para quem se contrapõe a tais empreendimentos.
Entretanto, apesar dos inúmeros conflitos gerados pela marcha do progresso, muitas são as vezes em que seus pequenos obstáculos não oferecem sequer a mais tímida resistência – e por que? Responderia eu que, entre (muitas) outras coisas, os obstáculos são seduzidos pelo progresso, convidados a dele participarem, sob a promessa de que, mais à frente, suas benesses poderão ser repartidas entre todos. Quem aí nunca ouviu a história do “primeiro, deve-se fazer o bolo crescer”...?
Muita gente falou isso, e tem mais gente ainda esperando até hoje a tal repartição do bolo. E justamente porque sempre entra em jogo o fator da crise, ou, mais precisamente, o agravamento das múltiplas contradições ativadas durante o desenvolvimento capetalista. Tomemos como exemplo a atual conjuntura: foram, grosso modo, as próprias formas de ganhar dinheiro inventadas nas décadas anteriores à presente que geraram a crise monumental que hoje se observa. Ou estou enganado? (pergunta retórica)
E aí, volta à cena nossa amiga, a austeridade – ou melhor, a medida de austeridade, já que o próprio progresso é considerado austero por muitos. Mais uma vez, diante da crise, exige-se de muitos um novo sacrifício, o qual é necessário para evitar o iminente colapso cataclísmico do mundo tal e qual conhecemos. Como disse alguém inteligente, concentram-se os lucros e socializam-se os danos – e fica sem o pão quem deu farinha ao bolo, simples assim. O momento da partilha, mítico e ainda inédito até aqui, é novamente adiado pela recessão, e deverá esperar mais algum tempo – o tempo, evidentemente, de estabilização e retorno ao crescimento econômico, ao progresso.
Caso o leitor não tenha percebido, estão já abraçados, austeridade e progresso. Ambos se aproximam por exigirem, obrigarem, o sacrifício de muitos – os muitos que são removidos de seus lares para a realização de um evento esportivo, os muitos que são desalojados para a instalação de uma, digamos, usina hidrelétrica, os muitos que perdem o direito a um serviço público de saúde e educação minimamente qualificado, os muitos que se vêem desempregados e, constantemente, atirados à miséria. Ambos se aproximam por corresponderem ao atendimento às demandas de uma minoria que avança pisando em cabeças e resolve seus problemas com oferendas de vidas alheias. São, conforme eu já disse, duas faces da mesma moeda.
P.S.1: sim, eu sei que tem um ato falho no meu texto. Não se preocupem: foi proposital.
P.S.2: sim, eu tenho mania de corrigir meus textos depois de publicá-los.
Para desfazermos a ilusória diferença, devemos observar o contexto em que tais vocábulos são utilizados. Se progresso diz respeito, histórica e cotidianamente, a uma marcha à frente – sendo esse à frente, necessariamente, melhor do que aquilo que ficou para trás -, a outrora inocente austeridade tornou-se acompanhante recorrente da palavra "medida", formando assim a hoje mui pronunciada "medida de austeridade" - expressão que diz respeito a uma política econômica e social que (segundo dizem alguns) se faz necessária para que as nações mais fragilizadas pela atual crise do capitalismo não entrem em colapso.
Dito isso, o leitor deve estar a se perguntar: por que diabos progresso e austeridade seriam coisas semelhantes? Se o progresso – coisa boa, desejável – é a marcha à frente, a melhora, e as medidas de austeridade são as rígidas, sóbrias e racionais (porém necessárias) formas de combate à crise - coisa ruim, indesejável -, de que maneira tais coisas se aproximam?
Pois bem: é aqui que adentramos o ponto crucial da argumentação. Ao que me parece, há um princípio que atravessa tanto a exigência das medidas de austeridade quanto a marcha do progresso.
Para melhor explicar a idéia, analisemos as reais conseqüências do que é hoje entendido como progresso.
No Brasil, sempre houve – e ainda os há às pencas – aqueles que se denominam progressistas, e até governos, por aqui, se consideram e são alcunhados como tal. Mas, certamente, o progressismo brasileiro não é apenas um movimento de pessoas que andam para a frente – ou seja: não é definido pelo sentido abstrato, encontrado no dicionário, do termo progresso; ele é, antes de mais nada, um projeto político, social e econômico específico, e que tem e teve a intenção de fazer avançarem as forças produtivas, o consumo, a produção de bens de consumo industrializados, o aumento do PIB, etc.. Trocando em miúdos: o progresso, tal qual foi – e é – posto em prática em nosso país, é um progresso que se movimenta no terreno do modo de produção capitalista, desenvolvendo e aprofundando sua inserção por aqui.
O inconveniente do progresso, conforme é possível compreender se observamos a história de nosso país, é que a marcha adiante nunca se depara com um espaço vazio e homogêneo. Seus passos, para se realizarem, precisam remover inúmeros obstáculos; e ele é, para não perdermos a chance de uma boa metáfora, como que um desbravador de matas virgens e fechadas, que vai removendo à base de facão aquilo que se põe como problema. E aí está a chave para chegarmos à conclusão que desejamos: no mais das vezes, esses obstáculos são pessoas de carne e osso, homens, mulheres e crianças que atravessam o caminho dos empreendimentos progressistas. E, quando isso acontece... bem, pior para quem se contrapõe a tais empreendimentos.
Entretanto, apesar dos inúmeros conflitos gerados pela marcha do progresso, muitas são as vezes em que seus pequenos obstáculos não oferecem sequer a mais tímida resistência – e por que? Responderia eu que, entre (muitas) outras coisas, os obstáculos são seduzidos pelo progresso, convidados a dele participarem, sob a promessa de que, mais à frente, suas benesses poderão ser repartidas entre todos. Quem aí nunca ouviu a história do “primeiro, deve-se fazer o bolo crescer”...?
Muita gente falou isso, e tem mais gente ainda esperando até hoje a tal repartição do bolo. E justamente porque sempre entra em jogo o fator da crise, ou, mais precisamente, o agravamento das múltiplas contradições ativadas durante o desenvolvimento capetalista. Tomemos como exemplo a atual conjuntura: foram, grosso modo, as próprias formas de ganhar dinheiro inventadas nas décadas anteriores à presente que geraram a crise monumental que hoje se observa. Ou estou enganado? (pergunta retórica)
E aí, volta à cena nossa amiga, a austeridade – ou melhor, a medida de austeridade, já que o próprio progresso é considerado austero por muitos. Mais uma vez, diante da crise, exige-se de muitos um novo sacrifício, o qual é necessário para evitar o iminente colapso cataclísmico do mundo tal e qual conhecemos. Como disse alguém inteligente, concentram-se os lucros e socializam-se os danos – e fica sem o pão quem deu farinha ao bolo, simples assim. O momento da partilha, mítico e ainda inédito até aqui, é novamente adiado pela recessão, e deverá esperar mais algum tempo – o tempo, evidentemente, de estabilização e retorno ao crescimento econômico, ao progresso.
Caso o leitor não tenha percebido, estão já abraçados, austeridade e progresso. Ambos se aproximam por exigirem, obrigarem, o sacrifício de muitos – os muitos que são removidos de seus lares para a realização de um evento esportivo, os muitos que são desalojados para a instalação de uma, digamos, usina hidrelétrica, os muitos que perdem o direito a um serviço público de saúde e educação minimamente qualificado, os muitos que se vêem desempregados e, constantemente, atirados à miséria. Ambos se aproximam por corresponderem ao atendimento às demandas de uma minoria que avança pisando em cabeças e resolve seus problemas com oferendas de vidas alheias. São, conforme eu já disse, duas faces da mesma moeda.
P.S.1: sim, eu sei que tem um ato falho no meu texto. Não se preocupem: foi proposital.
P.S.2: sim, eu tenho mania de corrigir meus textos depois de publicá-los.
quinta-feira, 28 de julho de 2011
A besta e sua caverna
Há uma lenda um pouco antiga que fala de uma besta em uma caverna. Dizem que a escuridão a engole hoje e a engolirá por toda a eternidade, e que há muito ela não é avistada por olhos mortais.
Contudo, parece difícil que tal relato seja verdadeiro. Segundo me parece, é muito mais provável que ninguém seja capaz de enxergar a besta não por sua distância de tudo, mas pelo fato de ela estar próxima demais e grande demais. Creio, aliás, que tudo quanto existe está nas dobras de seu corpo, sob suas unhas hediondas, entre seus dedos longos que alcançam tudo.
De qualquer modo, esteja essa besta isolada ou próxima, ela está. Descrevê-la é uma prática há muito esquecida, posto que ela não foi vista em alguns séculos; tudo o que se tem hoje sobre ela são murmúrios antigos, palavras ditas em voz baixa e reproduzidas num tom ainda mais baixo.
Diz-se que a criatura tem longos braços finos, com pouca carne e alguma pele – pele essa que pende, amolecida e morta, alguns centímetros por sob a estrutura óssea do braço. Acredita-se que em tempos mais antigos, em que nada nem ninguém havia ainda encontrado a caverna em que vive a besta, ela se alimentava de pequenos vermes, finos como lombrigas, que rastejavam ao seu redor. Tateando no escuro, devorava os minúsculos seres que muito mal a sustentavam; e, dos restos de sua mastigação, se alimentavam os vermes sobreviventes.
Sua boca, larga e longa, cheia de dentes pontiagudos perfilados, lembra muito a boca de um crocodilo. Seu hálito nauseabundo anuncia que os dentes, apesar de eficientes, permitem que muito do que a besta consome permaneça por longos períodos de tempo acumulado nas pequenas frestas do interior da boca – o que talvez seja o pior destino possível a qualquer coisa que exista.
O único olho da besta, olho sem pálpebra, enxerga mal e não serve para muita coisa – apenas, talvez, para anunciar sua eterna vigília. O que lhe permite a sobrevivência é, de fato, sua excepcional capacidade de distinguir coisas com o tatear. Suas mãos nervosas e eficientes, sempre ávidas por encontrar qualquer coisa que possa ser digerida, destroem muito do que tocam, posto que avançam com força demasiada; entretanto, mesmo em meio aos escombros que produzem, são capazes de colher aquilo que lhes interessa.
Possui também um pescoço fino, o qual vive caído para a frente e só se levanta com muito esforço – certamente por efeito do peso da boca massiva da criatura e de sua formidável mandíbula. O corpo que sustenta essa monumental e bizarra cabeça, por sua vez, não é algo lá muito terrível de se olhar – lembra, aliás, muito do que são os homens que passam fome: consiste em um peito magro, ossudo, encarquilhado, sob o qual está uma barriga relativamente volumosa.
A aparente míngua da besta, contudo, não condiz com a realidade. Apesar de, em tempos passados, a fome ter sido quase mortal para ela, fato é que hoje sua caverna se encontra em franco progresso. Desde que o primeiro ser vivo – além, é claro, dos vermes – foi por ela encontrado e deglutido, seu paladar se refinou e a variedade de sua alimentação aumentou. Muitas coisas vivas passaram a adentrar espontaneamente a caverna, de início por pura e simples inocência, e mais tarde sob a promessa de que a escuridão em que vive a besta era a mais gratificante das possibilidades. Assim sendo, foram deixados em paz os insossos e nojentos vermes; ficaram eles, portanto, livres do instinto predatório e da natureza insaciável da besta, passando a viver também de restos mais ricos e variados – de modo que se multiplicaram e engordaram tanto que cobriram o corpo da besta, a qual está sempre sentada com as pernas cruzadas, até a região de sua cintura.
Discordo do mito, como já disse, porque penso que a besta não mais se alimenta daquilo que vem de fora da caverna. Passado tanto tempo, e considerando-se a voracidade que a criatura apresenta, não é possível, não é lógico, que coisas ainda existam fora de seu alcance. Daí minha conclusão: a meu ver, tudo o que era antes do pecado original – o da entrada na caverna – hoje existe aos restos, aos pedaços miúdos; está em vãos, em pequeníssimos fossos no próprio corpo da besta, entre seus dentes, em seus orifícios. Seu organismo, acostumado à breve riqueza, já reclama presas novas, apesar de se regozijar com os ainda abundantes restos não consumidos pelos vermes. Imagino que, dentro de pouco tempo, os próprios vermes voltarão a ser consumidos pela besta, voltarão a diminuir, emagrecer, a viver na miséria – até que, no mundo fora da caverna, surjam miraculosamente novas e inocentes criaturas que se disponham a adentrar a escuridão.
Contudo, parece difícil que tal relato seja verdadeiro. Segundo me parece, é muito mais provável que ninguém seja capaz de enxergar a besta não por sua distância de tudo, mas pelo fato de ela estar próxima demais e grande demais. Creio, aliás, que tudo quanto existe está nas dobras de seu corpo, sob suas unhas hediondas, entre seus dedos longos que alcançam tudo.
De qualquer modo, esteja essa besta isolada ou próxima, ela está. Descrevê-la é uma prática há muito esquecida, posto que ela não foi vista em alguns séculos; tudo o que se tem hoje sobre ela são murmúrios antigos, palavras ditas em voz baixa e reproduzidas num tom ainda mais baixo.
Diz-se que a criatura tem longos braços finos, com pouca carne e alguma pele – pele essa que pende, amolecida e morta, alguns centímetros por sob a estrutura óssea do braço. Acredita-se que em tempos mais antigos, em que nada nem ninguém havia ainda encontrado a caverna em que vive a besta, ela se alimentava de pequenos vermes, finos como lombrigas, que rastejavam ao seu redor. Tateando no escuro, devorava os minúsculos seres que muito mal a sustentavam; e, dos restos de sua mastigação, se alimentavam os vermes sobreviventes.
Sua boca, larga e longa, cheia de dentes pontiagudos perfilados, lembra muito a boca de um crocodilo. Seu hálito nauseabundo anuncia que os dentes, apesar de eficientes, permitem que muito do que a besta consome permaneça por longos períodos de tempo acumulado nas pequenas frestas do interior da boca – o que talvez seja o pior destino possível a qualquer coisa que exista.
O único olho da besta, olho sem pálpebra, enxerga mal e não serve para muita coisa – apenas, talvez, para anunciar sua eterna vigília. O que lhe permite a sobrevivência é, de fato, sua excepcional capacidade de distinguir coisas com o tatear. Suas mãos nervosas e eficientes, sempre ávidas por encontrar qualquer coisa que possa ser digerida, destroem muito do que tocam, posto que avançam com força demasiada; entretanto, mesmo em meio aos escombros que produzem, são capazes de colher aquilo que lhes interessa.
Possui também um pescoço fino, o qual vive caído para a frente e só se levanta com muito esforço – certamente por efeito do peso da boca massiva da criatura e de sua formidável mandíbula. O corpo que sustenta essa monumental e bizarra cabeça, por sua vez, não é algo lá muito terrível de se olhar – lembra, aliás, muito do que são os homens que passam fome: consiste em um peito magro, ossudo, encarquilhado, sob o qual está uma barriga relativamente volumosa.
A aparente míngua da besta, contudo, não condiz com a realidade. Apesar de, em tempos passados, a fome ter sido quase mortal para ela, fato é que hoje sua caverna se encontra em franco progresso. Desde que o primeiro ser vivo – além, é claro, dos vermes – foi por ela encontrado e deglutido, seu paladar se refinou e a variedade de sua alimentação aumentou. Muitas coisas vivas passaram a adentrar espontaneamente a caverna, de início por pura e simples inocência, e mais tarde sob a promessa de que a escuridão em que vive a besta era a mais gratificante das possibilidades. Assim sendo, foram deixados em paz os insossos e nojentos vermes; ficaram eles, portanto, livres do instinto predatório e da natureza insaciável da besta, passando a viver também de restos mais ricos e variados – de modo que se multiplicaram e engordaram tanto que cobriram o corpo da besta, a qual está sempre sentada com as pernas cruzadas, até a região de sua cintura.
Discordo do mito, como já disse, porque penso que a besta não mais se alimenta daquilo que vem de fora da caverna. Passado tanto tempo, e considerando-se a voracidade que a criatura apresenta, não é possível, não é lógico, que coisas ainda existam fora de seu alcance. Daí minha conclusão: a meu ver, tudo o que era antes do pecado original – o da entrada na caverna – hoje existe aos restos, aos pedaços miúdos; está em vãos, em pequeníssimos fossos no próprio corpo da besta, entre seus dentes, em seus orifícios. Seu organismo, acostumado à breve riqueza, já reclama presas novas, apesar de se regozijar com os ainda abundantes restos não consumidos pelos vermes. Imagino que, dentro de pouco tempo, os próprios vermes voltarão a ser consumidos pela besta, voltarão a diminuir, emagrecer, a viver na miséria – até que, no mundo fora da caverna, surjam miraculosamente novas e inocentes criaturas que se disponham a adentrar a escuridão.
domingo, 10 de julho de 2011
Gênese
Foi justamente ali a primeira morada do homem. Ali: algo mais incerto do que o ato de apontar no horizonte algum lugar, uma floresta densa em que tudo era tudo confundindo-se consigo mesmo.
Ali dançavam as árvores antes de serem árvores, ao som e ao sabor de um vento que era a música que a nada aludia - simples som bruto, que levava consigo o sussurro das coisas vivas e mortas, das coisas animadas e inanimadas.
Foi ali que Deus – antes, obviamente, de ser batizado – pariu dentro de si a sua obra mais mal-acabada, imperfeita e incapaz. Foi ali que Deus construiu a corrupção de si mesmo, a desarticulação do tudo que era e que não achava que poderia deixar de ser.
Levando ao limite sua própria capacidade criativa, quis Deus fazer alguma coisa que não fosse como o resto – um pequeno e frágil brinquedo, incapaz de ser tudo ao mesmo tempo. Mas o brinquedo não respondeu logo aos seus desígnios, e foi considerado uma espécie de estorvo inútil. Era pura e simplesmente uma coisa muda, um monte de carne que não aparentava diferenciar-se.
Temeroso e orgulhoso, Deus não aceitou essa afronta à sua onipotência, e logo se pôs novamente a construir algo que não fosse tudo. Cá e lá fez uns ajustes no projeto inicial, mas a princípio ficou desapontado consigo - a coisa nova novamente o decepcionou.
Deu-se, porém, que as duas frustrantes invenções de Deus se puseram lado a lado um dia. Olharam-se por alguns instantes, até o momento em que a invenção mais nova tomou a atitude que modificou o destino do Universo: ao ver uma criatura longa e delgada que rastejava pelo chão, olhou para seu colega, arregalou os olhos e apontou. A invenção mais velha, assustada, percebeu que a coisa apontada era de uma cor diferente da sua; além disso não tinha pernas, não tinha uma cabeça redonda, mas sim uma achatada e em forma de seta. E, a partir daí, ambos observaram o redor e perceberam a esmagadora diferença eles e tudo o que não era eles – e até perceberam, enfim, o imenso abismo de diferenças que havia entre os dois, os quais não eram de forma alguma iguais.
Foi nesse momento, único e impossível de ser reproduzido, que a palavra tudo deixou de fazer sentido e passou a ser apenas uma palavra. Foi nesse momento que Deus foi batizado, e entendido como a coisa criadora de toda aquela indestrutível diversidade. Foi Deus, por fim, cultuado justamente por ter dado àquelas duas invenções – as quais chamaram-se a si mesmas pelos nomes de “Homem” e “Mulher” – a matéria à qual a criatividade seria capaz de dar tantos nomes quanto quisesse, fragmentando tudo na fé de que o tudo poderia ser encontrado no mais ínfimo pedaço de todas as coisas. E assim o Deus nomeado deixou de existir, posto que já era algo diferente de si mesmo.
Ali dançavam as árvores antes de serem árvores, ao som e ao sabor de um vento que era a música que a nada aludia - simples som bruto, que levava consigo o sussurro das coisas vivas e mortas, das coisas animadas e inanimadas.
Foi ali que Deus – antes, obviamente, de ser batizado – pariu dentro de si a sua obra mais mal-acabada, imperfeita e incapaz. Foi ali que Deus construiu a corrupção de si mesmo, a desarticulação do tudo que era e que não achava que poderia deixar de ser.
Levando ao limite sua própria capacidade criativa, quis Deus fazer alguma coisa que não fosse como o resto – um pequeno e frágil brinquedo, incapaz de ser tudo ao mesmo tempo. Mas o brinquedo não respondeu logo aos seus desígnios, e foi considerado uma espécie de estorvo inútil. Era pura e simplesmente uma coisa muda, um monte de carne que não aparentava diferenciar-se.
Temeroso e orgulhoso, Deus não aceitou essa afronta à sua onipotência, e logo se pôs novamente a construir algo que não fosse tudo. Cá e lá fez uns ajustes no projeto inicial, mas a princípio ficou desapontado consigo - a coisa nova novamente o decepcionou.
Deu-se, porém, que as duas frustrantes invenções de Deus se puseram lado a lado um dia. Olharam-se por alguns instantes, até o momento em que a invenção mais nova tomou a atitude que modificou o destino do Universo: ao ver uma criatura longa e delgada que rastejava pelo chão, olhou para seu colega, arregalou os olhos e apontou. A invenção mais velha, assustada, percebeu que a coisa apontada era de uma cor diferente da sua; além disso não tinha pernas, não tinha uma cabeça redonda, mas sim uma achatada e em forma de seta. E, a partir daí, ambos observaram o redor e perceberam a esmagadora diferença eles e tudo o que não era eles – e até perceberam, enfim, o imenso abismo de diferenças que havia entre os dois, os quais não eram de forma alguma iguais.
Foi nesse momento, único e impossível de ser reproduzido, que a palavra tudo deixou de fazer sentido e passou a ser apenas uma palavra. Foi nesse momento que Deus foi batizado, e entendido como a coisa criadora de toda aquela indestrutível diversidade. Foi Deus, por fim, cultuado justamente por ter dado àquelas duas invenções – as quais chamaram-se a si mesmas pelos nomes de “Homem” e “Mulher” – a matéria à qual a criatividade seria capaz de dar tantos nomes quanto quisesse, fragmentando tudo na fé de que o tudo poderia ser encontrado no mais ínfimo pedaço de todas as coisas. E assim o Deus nomeado deixou de existir, posto que já era algo diferente de si mesmo.
sábado, 2 de julho de 2011
Sobre universidades e seus "níveis"
Hoje, só pra variar um pouco, trataremos de um assunto polêmico: a recente adoção integral, por parte da Universidade Federal do Rio de Janeiro, do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) como única prova a ser realizada por aqueles que pretendem ingressar nos cursos daquela universidade (recomendo, para que haja um bom entendimento do presente texto, que o link acima seja lido).
A princípio, uma nota de sinceridade deve ser feita por mim: eu não sou, nem de longe, um especialista no assunto “educação”. Sendo assim, meu objetivo aqui se prende aos meus limites: não vou entrar – ou entrarei tanto quanto me for possível – numa discussão sobre a legitimidade, a eficiência ou o método do ENEM enquanto forma de avaliação da qualidade do ensino no Brasil e como forma de acesso às vagas em universidades. Ao invés disso. buscarei discutir com algumas formulações que tenho ouvido e lido por aí, as quais atacam a medida da UFRJ.
Ao notar a indignação de algumas pessoas quanto à questão, preocupei-me ao perceber que na maioria dos casos (mas não em todos, evidentemente)lançava-se mão de argumentos excessivamente elitistas para a defesa dos pontos de vista: ao que parece, a adoção do ENEM estaria aí para “diminuir o nível” da Universidade, posto que esse exame seria mais “fácil” do que era o tradicional vestibular da UFRJ.
Particularmente, não vejo o ENEM como uma prova muito adequada para a avaliação dos estudantes: ele realmente é excessivamente longo, constituindo-se mais em teste de resistência do que em uma mensuração de conhecimento e de habilidades cognitivas. Isso, porém, é secundário para a nossa argumentação. Nosso ponto, aqui, diz mais respeito ao fato de que muita gente – gente capaz, inteligente (o que até assusta mais) – acha que o ENEM é pouco “seletivo”, e coloca alunos “bons” – leia-se: alunos oriundos de escolas em sua maioria caras e de camadas mais abastadas de nossa sociedade – mais ou menos em pé de igualdade com alunos “ruins” – ou seja, alunos oriundos de escolas públicas, de escolas particulares mais baratas e de camadas menos abastadas de nossa sociedade. Em suma: quase todo mundo entende (como eu) que a adoção do ENEM é um tipo de ferramenta de inclusão de estudantes pobres e/ou vindos de escolas públicas em cursos de nível superior, vendo, porém (diferentemente de mim), essa inclusão como algo que potencialmente diminuirá o “nível” dos cursos de graduação.
Na minha humilde opinião, esse tipo de argumento é furado por uma série de razões. Em primeiro lugar, até onde eu sei as universidades que adotaram o sistema de cotas, por exemplo – o qual, supostamente, também diminuiriam o “nível” dos cursos universitários por ser um sistema inclusivo e "pouco meritocrático" – perceberam que os alunos que alcançam o ensino superior por esse meio possuem um desempenho tão bom quanto seus colegas que prestaram o vestibular tradicional. Portanto, tendo sido derrubado pelos fatos esse senso comum grosseiro e extremamente elitista, fica a seguinte questão: qual é, afinal, o problema de se excluir o vestibular “tradicional” e se estabelecer uma avaliação que coloque em pé de (suposta) igualdade tanto os estudantes menos dotados de vantagens materiais e aqueles alunos que têm dinheiro para serem adestrados pelos cursinhos pré-vestibulares?
Feita de maneira breve essa discussão,ainda ficam alguns problemas. O mais importante deles está ligado ao argumento de que “são os alunos que fazem a universidade”, e que portanto alunos de escolas públicas que são pobres puxariam para baixo as universidades. À parte a já denunciada natureza sofismática do argumento, ele possui um outro erro: ao que parece, o que constrói o sistema educacional e sua qualidade é o “esforço” individual dos alunos. Em algum nível, isso até é verdade. Entretanto, se entendemos e concordamos um pouco com Bourdieu (que, grosso modo, afirma que as desigualdades sócio-econômicas se reproduzem dentro do sistema educacional), também é verdade que a qualidade do desempenho escolar/universitário é infinitamente mais difícil para pessoas mais pobres – e, assim, o pensamento meritocrático vulgar cai por terra, já que não estamos falando de sujeitos que partem de lugares iguais e que dispõem de tempo e oportunidades semelhantes.
Sendo assim, se queremos um sistema educacional mais igualitário, devemos sim apoiar a inclusão de estudantes oriundos de camadas mais pobres no sistema universitário – afinal, o mérito é uma coisa que, na maioria dos casos, não passa de uma falácia elitista. Porém, isso por si só não basta: se não são dadas aos alunos condições materiais para que continuem seus estudos, o mesmo sistema perverso acaba se reproduzindo, acontecendo, por exemplo (como já acontece), o número absurdo de evasão que observamos na maioria dos cursos de graduação. E se, ao mesmo tempo – ou não – queremos um sistema universitário de “nível elevado”, não devemos nos dirigir contra os estudantes mais pobres como se eles fossem párias responsáveis pela decadência da universidade. Ao invés de concentrarmos nossa atenção contra o método de inclusão de novos alunos, deveríamos garantir que nossos professores fossem bem pagos e qualificados, que nossos laboratórios fossem bem equipados, que a estrutura física da universidade possibilitasse uma melhor formação. Deveríamos, por exemplo, protestar contra os cortes feitos no orçamento do Ministério da Educação – algo contra o que, aliás, pouca gente parece se indignar – ao invés de acharmos que pobre não tem direito de se formar no ensino superior.
P.S.: aqui, encontram-se dados relativos à política de cotas da UERJ. Dá uma olhada, que mesmo na crueza dos números já ficam óbvias algumas coisas que estão mais ou menos presentes no texto acima.
P.S.2: Aqui, uma crítica ácida, competente e precisa direcionada ao discurso preconceituoso e elitista das pessoas "esclarecidas" que se posicionaram contra essa óbvia profanação da sacralidade institucional da UFRJ.
A princípio, uma nota de sinceridade deve ser feita por mim: eu não sou, nem de longe, um especialista no assunto “educação”. Sendo assim, meu objetivo aqui se prende aos meus limites: não vou entrar – ou entrarei tanto quanto me for possível – numa discussão sobre a legitimidade, a eficiência ou o método do ENEM enquanto forma de avaliação da qualidade do ensino no Brasil e como forma de acesso às vagas em universidades. Ao invés disso. buscarei discutir com algumas formulações que tenho ouvido e lido por aí, as quais atacam a medida da UFRJ.
Ao notar a indignação de algumas pessoas quanto à questão, preocupei-me ao perceber que na maioria dos casos (mas não em todos, evidentemente)lançava-se mão de argumentos excessivamente elitistas para a defesa dos pontos de vista: ao que parece, a adoção do ENEM estaria aí para “diminuir o nível” da Universidade, posto que esse exame seria mais “fácil” do que era o tradicional vestibular da UFRJ.
Particularmente, não vejo o ENEM como uma prova muito adequada para a avaliação dos estudantes: ele realmente é excessivamente longo, constituindo-se mais em teste de resistência do que em uma mensuração de conhecimento e de habilidades cognitivas. Isso, porém, é secundário para a nossa argumentação. Nosso ponto, aqui, diz mais respeito ao fato de que muita gente – gente capaz, inteligente (o que até assusta mais) – acha que o ENEM é pouco “seletivo”, e coloca alunos “bons” – leia-se: alunos oriundos de escolas em sua maioria caras e de camadas mais abastadas de nossa sociedade – mais ou menos em pé de igualdade com alunos “ruins” – ou seja, alunos oriundos de escolas públicas, de escolas particulares mais baratas e de camadas menos abastadas de nossa sociedade. Em suma: quase todo mundo entende (como eu) que a adoção do ENEM é um tipo de ferramenta de inclusão de estudantes pobres e/ou vindos de escolas públicas em cursos de nível superior, vendo, porém (diferentemente de mim), essa inclusão como algo que potencialmente diminuirá o “nível” dos cursos de graduação.
Na minha humilde opinião, esse tipo de argumento é furado por uma série de razões. Em primeiro lugar, até onde eu sei as universidades que adotaram o sistema de cotas, por exemplo – o qual, supostamente, também diminuiriam o “nível” dos cursos universitários por ser um sistema inclusivo e "pouco meritocrático" – perceberam que os alunos que alcançam o ensino superior por esse meio possuem um desempenho tão bom quanto seus colegas que prestaram o vestibular tradicional. Portanto, tendo sido derrubado pelos fatos esse senso comum grosseiro e extremamente elitista, fica a seguinte questão: qual é, afinal, o problema de se excluir o vestibular “tradicional” e se estabelecer uma avaliação que coloque em pé de (suposta) igualdade tanto os estudantes menos dotados de vantagens materiais e aqueles alunos que têm dinheiro para serem adestrados pelos cursinhos pré-vestibulares?
Feita de maneira breve essa discussão,ainda ficam alguns problemas. O mais importante deles está ligado ao argumento de que “são os alunos que fazem a universidade”, e que portanto alunos de escolas públicas que são pobres puxariam para baixo as universidades. À parte a já denunciada natureza sofismática do argumento, ele possui um outro erro: ao que parece, o que constrói o sistema educacional e sua qualidade é o “esforço” individual dos alunos. Em algum nível, isso até é verdade. Entretanto, se entendemos e concordamos um pouco com Bourdieu (que, grosso modo, afirma que as desigualdades sócio-econômicas se reproduzem dentro do sistema educacional), também é verdade que a qualidade do desempenho escolar/universitário é infinitamente mais difícil para pessoas mais pobres – e, assim, o pensamento meritocrático vulgar cai por terra, já que não estamos falando de sujeitos que partem de lugares iguais e que dispõem de tempo e oportunidades semelhantes.
Sendo assim, se queremos um sistema educacional mais igualitário, devemos sim apoiar a inclusão de estudantes oriundos de camadas mais pobres no sistema universitário – afinal, o mérito é uma coisa que, na maioria dos casos, não passa de uma falácia elitista. Porém, isso por si só não basta: se não são dadas aos alunos condições materiais para que continuem seus estudos, o mesmo sistema perverso acaba se reproduzindo, acontecendo, por exemplo (como já acontece), o número absurdo de evasão que observamos na maioria dos cursos de graduação. E se, ao mesmo tempo – ou não – queremos um sistema universitário de “nível elevado”, não devemos nos dirigir contra os estudantes mais pobres como se eles fossem párias responsáveis pela decadência da universidade. Ao invés de concentrarmos nossa atenção contra o método de inclusão de novos alunos, deveríamos garantir que nossos professores fossem bem pagos e qualificados, que nossos laboratórios fossem bem equipados, que a estrutura física da universidade possibilitasse uma melhor formação. Deveríamos, por exemplo, protestar contra os cortes feitos no orçamento do Ministério da Educação – algo contra o que, aliás, pouca gente parece se indignar – ao invés de acharmos que pobre não tem direito de se formar no ensino superior.
P.S.: aqui, encontram-se dados relativos à política de cotas da UERJ. Dá uma olhada, que mesmo na crueza dos números já ficam óbvias algumas coisas que estão mais ou menos presentes no texto acima.
P.S.2: Aqui, uma crítica ácida, competente e precisa direcionada ao discurso preconceituoso e elitista das pessoas "esclarecidas" que se posicionaram contra essa óbvia profanação da sacralidade institucional da UFRJ.
quarta-feira, 24 de novembro de 2010
Rio de Janeiro: cidade sitiada
Às vezes, é extremamente difícil não ter uma percepção contínua da História.
Hoje, acordou e viveu o Rio de Janeiro num estado de pânico. Não sabemos, até agora, em que medida tal estado é justificado: tendo nós à nossa disposição a mídia que temos, é difícil não duvidarmos das informações que recebemos.
Mas os fatos que agora se desenrolam, aumentados ou não, têm um imenso vínculo com o passado, e não um passado remoto (muito pelo contrário); particularmente, eu os credito ao último processo eleitoral.
Tal vínculo se dá, ao que me parece, por conta das propagandas exageradas ao redor da UPP. Essa política pública (na minha opinião, opressiva sobre uma certa parcela da população e de eficácia bastante questionável se analisada a partir de uma perspectiva ampla), extremamente alardeada durante o período imediatamente anterior às eleições de 2010, obteve esse tratamento quando o governador Sérgio Cabral percebeu que, tendo feito um governo de avanços medíocres na educação, na saúde, etc., a única plataforma de campanha viável e de amplo apoio popular era sua "nova" política de segurança.
A propaganda, entretanto, não chega apenas à população em geral. Ela chega também aos ouvidos das organizações criminosas, que, como a maior parte dos cariocas, acreditam que a longo prazo a UPP pode realmente criar um contexto de repressão quase que absoluta da criminalidade. Tal fato, aliado ao pensamento mais marqueteiro do que estratégico de nossos administradores públicos (que fecham os olhos às regiões realmente mais afetadas pelo tráfico e pelas milícias, preferindo assegurar, primeiro, a segurança das camadas médias e altas da sociedade), cria um contexto em que pontos estratégicos da cidade continuam à mercê de traficantes, facilitando sua ação.
Em resumo, o que agora observamos é a junção de dois fatores imediatos (porque sabemos que as causas sociológicas da criminalidade são infinitamente mais profundas do que as que agora apresento): 1)um marketing exagerado sobre uma política de segurança, que causou uma reação do tráfico; e 2)uma política de segurança pública que é quase pura retórica, e que não leva em consiferação os pontos realmente estratégicos e mais violentos da cidade.
Entretanto, o que se vê é uma imprensa que consulta certos cientistas sociais cuja reflexão é fantasticamente superficial (os profetas do óbvio), e só vem confirmar aquilo que se alinha com os interesses do governo do Rio. Percebemos um incrível malabarismo, absurdo a meu ver, para afirmar que a atual situação de "caos" é fruto do trabalho intensivo e competente das autoridades estaduais.
O que se dá é fruto de um erro estratégico, isso não pode ser negado; entretanto, devemos compreender a real abrangência de políticas de segurança que contam apenas com a repressão policial à criminalidade. Porque a polícia, ao contrário do que disse Weslyan Roriz, não pode estar em todos os recantos da cidade; a partir disso, o necessário é criar uma situação de combate ao crime (esse tipo de crime, filho da pobreza e da precariedade) que ataque as bases desse. Tal seria um processo verdadeiramente a longo prazo, que deveria ser aguardado pacientemente até que, enfim, chegásemos a uma situação próxima do ideal. Entretanto, políticas públicas não-imediatistas e com amplo e real poder de modificar a sociedade não servem para angariar votos e para perpetuar no poder grupos que vivem da corrupção, da miséria alheia, da real "ausência do Estado"...
Hoje, acordou e viveu o Rio de Janeiro num estado de pânico. Não sabemos, até agora, em que medida tal estado é justificado: tendo nós à nossa disposição a mídia que temos, é difícil não duvidarmos das informações que recebemos.
Mas os fatos que agora se desenrolam, aumentados ou não, têm um imenso vínculo com o passado, e não um passado remoto (muito pelo contrário); particularmente, eu os credito ao último processo eleitoral.
Tal vínculo se dá, ao que me parece, por conta das propagandas exageradas ao redor da UPP. Essa política pública (na minha opinião, opressiva sobre uma certa parcela da população e de eficácia bastante questionável se analisada a partir de uma perspectiva ampla), extremamente alardeada durante o período imediatamente anterior às eleições de 2010, obteve esse tratamento quando o governador Sérgio Cabral percebeu que, tendo feito um governo de avanços medíocres na educação, na saúde, etc., a única plataforma de campanha viável e de amplo apoio popular era sua "nova" política de segurança.
A propaganda, entretanto, não chega apenas à população em geral. Ela chega também aos ouvidos das organizações criminosas, que, como a maior parte dos cariocas, acreditam que a longo prazo a UPP pode realmente criar um contexto de repressão quase que absoluta da criminalidade. Tal fato, aliado ao pensamento mais marqueteiro do que estratégico de nossos administradores públicos (que fecham os olhos às regiões realmente mais afetadas pelo tráfico e pelas milícias, preferindo assegurar, primeiro, a segurança das camadas médias e altas da sociedade), cria um contexto em que pontos estratégicos da cidade continuam à mercê de traficantes, facilitando sua ação.
Em resumo, o que agora observamos é a junção de dois fatores imediatos (porque sabemos que as causas sociológicas da criminalidade são infinitamente mais profundas do que as que agora apresento): 1)um marketing exagerado sobre uma política de segurança, que causou uma reação do tráfico; e 2)uma política de segurança pública que é quase pura retórica, e que não leva em consiferação os pontos realmente estratégicos e mais violentos da cidade.
Entretanto, o que se vê é uma imprensa que consulta certos cientistas sociais cuja reflexão é fantasticamente superficial (os profetas do óbvio), e só vem confirmar aquilo que se alinha com os interesses do governo do Rio. Percebemos um incrível malabarismo, absurdo a meu ver, para afirmar que a atual situação de "caos" é fruto do trabalho intensivo e competente das autoridades estaduais.
O que se dá é fruto de um erro estratégico, isso não pode ser negado; entretanto, devemos compreender a real abrangência de políticas de segurança que contam apenas com a repressão policial à criminalidade. Porque a polícia, ao contrário do que disse Weslyan Roriz, não pode estar em todos os recantos da cidade; a partir disso, o necessário é criar uma situação de combate ao crime (esse tipo de crime, filho da pobreza e da precariedade) que ataque as bases desse. Tal seria um processo verdadeiramente a longo prazo, que deveria ser aguardado pacientemente até que, enfim, chegásemos a uma situação próxima do ideal. Entretanto, políticas públicas não-imediatistas e com amplo e real poder de modificar a sociedade não servem para angariar votos e para perpetuar no poder grupos que vivem da corrupção, da miséria alheia, da real "ausência do Estado"...
terça-feira, 23 de novembro de 2010
Querem matar o futebol
O futebol é um esporte eminentemente brasileiro. Digo isso não apenas pelo fato de os melhores jogadores do mundo em toda a história serem de nosso país; nem tampouco pelos revolucionários malabarismos táticos propostos pelos europeus, muitos dos quais nascidos da aparente invencibilidade de certas equipes que outrora vestiram a camisa amarela.
Não, o futebol não é nosso apenas porque nós somos os melhores nesse esporte, porque obrigamos os outros a darem um jeito de lidar com nossa insolúvel superioridade; o futebol é nosso porque nós o amamos mais do que qualquer um, e no meu mundo as coisas pertencem a quem é mais dedicado a elas.
Em outras freguesias, é verdade, magnatas e empreendedores dão ao nosso esporte roupas e jóias brilhantes, adornando com as modas mais modernas o jogo da bola nos pés. Em estádios do exterior, o que se vê são os “artistas da bola” pisarem em verdes tapetes, ao som dos insosos “uhs” e “ahs” emitidos pela platéia cada vez mais passiva, elitizada e civilizada.
Mas, aqui, o futebol não é negócio não. É coisa sentida. Ai de quem me chamar de consumidor no Maracanã! Lá eu sou sei-lá-o-quê, criatura de nome indefinido; não sou ninguém e sou todos. Grito junto sem precisar de aviso ou sinal, canto em uníssono com pessoas que nunca vi... sou o reflexo do que vejo no campo, e creio fielmente que posso intervir em algo que, segundo alguns imbecis da objetividade, foge ao meu controle.
Eis, entretanto, que o futebol brasileiro entra num processo de virar outra coisa. De repente, torcedores são obrigados a enfiar a bunda em cadeiras de plástico frio, engolindo cachorros-quentes de ouro, num silêncio cada vez mais aterrador. A integração com a coisa vista, a consciência inconsciente do torcedor de que ele é parte integrante do todo do espetáculo, está indo por água abaixo.
O que se vê é um processo de destruição de uma coisa que é de todos nós, e que só existe por isso. No local em que, outrora, a língua oficial era o palavrão, demagogos estúpidos proclamam a lei da boca limpa; junto deles, um certo segmento da sociedade, dono de todos os preceitos morais da boa cristandade, se vale de um discurso preconceituoso e moralista para defender pontos de vista que não fazem sentido algum.
Porque dizer que a suposta moralidade distorcida da população brasileira se reflete na maneira como encaramos o futebol é algo extremamente esdrúxulo. Futebol não é pra ser correto, justo, nem nada disso. O esporte tem regras, isso é claro; entretanto, burlá-las não é crime. Isso porque, como diz o filósofo, o esporte brasileiro é “a mais importante das coisas menos importantes”; ele não é nem um reflexo de nossa sociedade, e muito menos um mero esporte; é, com o perdão do clichê, a mais generalizada das paixões.
Dentro disso, aliás, cabe ressaltar que a paixão pelo futebol não nos dá o direito de sairmos no braço com ninguém pelo simples fato de esse alguém vestir a camisa de um clube que não o nosso; os que fazem isso são antes imbecis que nada têm a ver com clubes e com paixões, homens sem objetivos e sem preocupações que lhes façam, pelo menos, zelar pela própria sobrevivência. Quem gosta de futebol, essa arte esportiva, xinga e odeia o clube dos outros na medida em que vê nesse clube a possibilidade de ser melhor do que o seu. O ódio que descrevo, nesse sentido, nunca é contra o torcedor: é contra sua bandeira.
Retomando o argumento: a quebra das regras, no futebol, pode inclusive ser heróica. Que o diga Maradona, o homem que vingou seu país de uma estrondosa derrota bélica com um gol de mão. Se fosse com o pé, a vitória seria menos vitoriosa; quiçá, vergonhosa. Na Argentina pós-86, crianças não passaram a roubar na rua e nem o número de sonegadores aumentou; a vitória argentina sobre os ingleses foi apenas uma vitória, enfiada na guela dos bretões com requintes de crueldade. E, aqui pelo Brasil mesmo, duvido que qualquer um não se regozije ao ver a formidável e histórica cotovelada que o Pelé deu nas fuças de um João uruguaio, fazendo com que esse, além de apanhar, tomasse um cartão amarelo.
Sei que o que eu digo não quer dizer nada a ninguém. Mas eu digo mesmo assim. Ninguém vai ler isso aqui, e dentro de alguns anos o ingresso para ver jogo em estádio será inacessível para grande parte da população. De qualquer forma, tenho raiva: raiva porque completos imbecis pretendem destruir um esporte que só existe por conta das massas; raiva porque, daqui a pouco, xingar palavrão em estádio será coisa de tomar processo. Termino, pois, dedicando um inigualável aforismo de Nietzsche aos professores da “ética no esporte”:
“Ética é o meu ovo esquerdo.”
Não, o futebol não é nosso apenas porque nós somos os melhores nesse esporte, porque obrigamos os outros a darem um jeito de lidar com nossa insolúvel superioridade; o futebol é nosso porque nós o amamos mais do que qualquer um, e no meu mundo as coisas pertencem a quem é mais dedicado a elas.
Em outras freguesias, é verdade, magnatas e empreendedores dão ao nosso esporte roupas e jóias brilhantes, adornando com as modas mais modernas o jogo da bola nos pés. Em estádios do exterior, o que se vê são os “artistas da bola” pisarem em verdes tapetes, ao som dos insosos “uhs” e “ahs” emitidos pela platéia cada vez mais passiva, elitizada e civilizada.
Mas, aqui, o futebol não é negócio não. É coisa sentida. Ai de quem me chamar de consumidor no Maracanã! Lá eu sou sei-lá-o-quê, criatura de nome indefinido; não sou ninguém e sou todos. Grito junto sem precisar de aviso ou sinal, canto em uníssono com pessoas que nunca vi... sou o reflexo do que vejo no campo, e creio fielmente que posso intervir em algo que, segundo alguns imbecis da objetividade, foge ao meu controle.
Eis, entretanto, que o futebol brasileiro entra num processo de virar outra coisa. De repente, torcedores são obrigados a enfiar a bunda em cadeiras de plástico frio, engolindo cachorros-quentes de ouro, num silêncio cada vez mais aterrador. A integração com a coisa vista, a consciência inconsciente do torcedor de que ele é parte integrante do todo do espetáculo, está indo por água abaixo.
O que se vê é um processo de destruição de uma coisa que é de todos nós, e que só existe por isso. No local em que, outrora, a língua oficial era o palavrão, demagogos estúpidos proclamam a lei da boca limpa; junto deles, um certo segmento da sociedade, dono de todos os preceitos morais da boa cristandade, se vale de um discurso preconceituoso e moralista para defender pontos de vista que não fazem sentido algum.
Porque dizer que a suposta moralidade distorcida da população brasileira se reflete na maneira como encaramos o futebol é algo extremamente esdrúxulo. Futebol não é pra ser correto, justo, nem nada disso. O esporte tem regras, isso é claro; entretanto, burlá-las não é crime. Isso porque, como diz o filósofo, o esporte brasileiro é “a mais importante das coisas menos importantes”; ele não é nem um reflexo de nossa sociedade, e muito menos um mero esporte; é, com o perdão do clichê, a mais generalizada das paixões.
Dentro disso, aliás, cabe ressaltar que a paixão pelo futebol não nos dá o direito de sairmos no braço com ninguém pelo simples fato de esse alguém vestir a camisa de um clube que não o nosso; os que fazem isso são antes imbecis que nada têm a ver com clubes e com paixões, homens sem objetivos e sem preocupações que lhes façam, pelo menos, zelar pela própria sobrevivência. Quem gosta de futebol, essa arte esportiva, xinga e odeia o clube dos outros na medida em que vê nesse clube a possibilidade de ser melhor do que o seu. O ódio que descrevo, nesse sentido, nunca é contra o torcedor: é contra sua bandeira.
Retomando o argumento: a quebra das regras, no futebol, pode inclusive ser heróica. Que o diga Maradona, o homem que vingou seu país de uma estrondosa derrota bélica com um gol de mão. Se fosse com o pé, a vitória seria menos vitoriosa; quiçá, vergonhosa. Na Argentina pós-86, crianças não passaram a roubar na rua e nem o número de sonegadores aumentou; a vitória argentina sobre os ingleses foi apenas uma vitória, enfiada na guela dos bretões com requintes de crueldade. E, aqui pelo Brasil mesmo, duvido que qualquer um não se regozije ao ver a formidável e histórica cotovelada que o Pelé deu nas fuças de um João uruguaio, fazendo com que esse, além de apanhar, tomasse um cartão amarelo.
Sei que o que eu digo não quer dizer nada a ninguém. Mas eu digo mesmo assim. Ninguém vai ler isso aqui, e dentro de alguns anos o ingresso para ver jogo em estádio será inacessível para grande parte da população. De qualquer forma, tenho raiva: raiva porque completos imbecis pretendem destruir um esporte que só existe por conta das massas; raiva porque, daqui a pouco, xingar palavrão em estádio será coisa de tomar processo. Termino, pois, dedicando um inigualável aforismo de Nietzsche aos professores da “ética no esporte”:
“Ética é o meu ovo esquerdo.”
terça-feira, 16 de novembro de 2010
Doutor Jivago
Há poucos dias, andei revendo o clássico Doutor Jivago, dirigido pelo consagrado David Lean (que também é diretor dos fantásticos A ponte do rio Kwai e Lawrence da Arábia). O longa, ganhador de cinco prêmios da Academia, é um épico reconhecido por quase todos os apaixonados pela sétima arte como um dos melhores filmes da história do cinema.
Muito embora eu tenha minhas opiniões de cunho estético sobre o mérito cinematográfico de Doutor Jivago, não é a tais opiniões que pretendo me referir aqui. Gostaria, apenas, de falar sobre alguns dos aspectos do discurso que esse filme parece, na minha opinião, transmitir.
Em primeiro lugar, para quem não viu o filme (corre pra ver, meu filho!), vou contar rápida e superficialmente sua premissa: o desenrolar da narrativa inicia-se no contexto das agitações imediatemante anteriores à Revolução Russa. Conta a história de um jovem médico que, em meio à revolução, tenta reconstruir sua vida, ao mesmo tempo em que lida com uma paixão paralela a seu casamento.
Retirando de nosso foco a bela trama amorosa apresentada em Doutor Jivago, vejo nesse longa algo que, para mim, é por demais interessante: ele demonstra a sincera perplexidade dos indivíduos criados no ambiente cultural anglo-saxão diante das possibilidades criadas pelo socialismo. No filme citado, isso fica tão claro que chega ser engraçado.
Sendo assim,Doutor Jivago, como eu já disse, tranborda de juízos (quase todo eles negativos) em relação àquilo que a Revolução Russa conseguiu instalar na Rússia. Não quero, aqui, ser um daqueles teóricos da conspiração que dizem que a indústria cinematográfica das suprproduções seve para instalar na cabeça das pessoas do mundo todo o ideário da dominação imperialista anglo-saxã; minha pretensão é, apenas, mostrar o quanto americanos e britânicos normalmente não conseguem conceber determinadas coisas buscadas pelo socialismo.
A princípio, o filme dirigido David Lean parece se colocar contra as óbvias injustiças cometidas pelas elites russas contra o povo. Isso fica claro, por exemplo, na cena em que a cavalaria do exército russo massacra cruelmente uma pacífica manifestação de trabalhadores, que protestavam pela melhoria de suas condições de vida. Mas, apesar dessa tendência anti-opressora, o longa parece condenar algumas das modificações impostas pela Revolução.
Isso fica claro, por exemplo, na cena em que um dos personagens do filme volta à sua mansão. Essa, ocupada por representantes da Revolução, tornara-se moradia coletiva, dividida entre pessoas colocadas, ali, em situação de igualdade. Podemos perceber, ali, o quão estranha é, na ótica de um americano ou de um inglês, a ideia de que a propriedade privada talvez mais valorizada, o "lar", possa ser compartilhado com a "coletividade".
Digo que esse estranhamento está mais no ponto de vista do diretor e da produção do longa do que, necessariamente, no ponto de vista dos personagens, porque o questionamento da realidade imposta pelo Comunismo não está, que eu me lembre, nas palavras de Jivago ou de qualquer um dos protagonistas; o estranhamento está, na verdade, na personagem claramente caricata da agente da Revolução, que impede que o antigo dono da casa tome posse de seus "bens". Também está (de maneira mais contundente, a meu ver), por exemplo, no tratamento igulmente caricato que é dado ao revolucionário Pasha, um exemplo quase que ideal-típico de racionalidade maquiavélica e de burocrata.
Muito embora eu tenha minhas opiniões de cunho estético sobre o mérito cinematográfico de Doutor Jivago, não é a tais opiniões que pretendo me referir aqui. Gostaria, apenas, de falar sobre alguns dos aspectos do discurso que esse filme parece, na minha opinião, transmitir.
Em primeiro lugar, para quem não viu o filme (corre pra ver, meu filho!), vou contar rápida e superficialmente sua premissa: o desenrolar da narrativa inicia-se no contexto das agitações imediatemante anteriores à Revolução Russa. Conta a história de um jovem médico que, em meio à revolução, tenta reconstruir sua vida, ao mesmo tempo em que lida com uma paixão paralela a seu casamento.
Retirando de nosso foco a bela trama amorosa apresentada em Doutor Jivago, vejo nesse longa algo que, para mim, é por demais interessante: ele demonstra a sincera perplexidade dos indivíduos criados no ambiente cultural anglo-saxão diante das possibilidades criadas pelo socialismo. No filme citado, isso fica tão claro que chega ser engraçado.
Sendo assim,Doutor Jivago, como eu já disse, tranborda de juízos (quase todo eles negativos) em relação àquilo que a Revolução Russa conseguiu instalar na Rússia. Não quero, aqui, ser um daqueles teóricos da conspiração que dizem que a indústria cinematográfica das suprproduções seve para instalar na cabeça das pessoas do mundo todo o ideário da dominação imperialista anglo-saxã; minha pretensão é, apenas, mostrar o quanto americanos e britânicos normalmente não conseguem conceber determinadas coisas buscadas pelo socialismo.
A princípio, o filme dirigido David Lean parece se colocar contra as óbvias injustiças cometidas pelas elites russas contra o povo. Isso fica claro, por exemplo, na cena em que a cavalaria do exército russo massacra cruelmente uma pacífica manifestação de trabalhadores, que protestavam pela melhoria de suas condições de vida. Mas, apesar dessa tendência anti-opressora, o longa parece condenar algumas das modificações impostas pela Revolução.
Isso fica claro, por exemplo, na cena em que um dos personagens do filme volta à sua mansão. Essa, ocupada por representantes da Revolução, tornara-se moradia coletiva, dividida entre pessoas colocadas, ali, em situação de igualdade. Podemos perceber, ali, o quão estranha é, na ótica de um americano ou de um inglês, a ideia de que a propriedade privada talvez mais valorizada, o "lar", possa ser compartilhado com a "coletividade".
Digo que esse estranhamento está mais no ponto de vista do diretor e da produção do longa do que, necessariamente, no ponto de vista dos personagens, porque o questionamento da realidade imposta pelo Comunismo não está, que eu me lembre, nas palavras de Jivago ou de qualquer um dos protagonistas; o estranhamento está, na verdade, na personagem claramente caricata da agente da Revolução, que impede que o antigo dono da casa tome posse de seus "bens". Também está (de maneira mais contundente, a meu ver), por exemplo, no tratamento igulmente caricato que é dado ao revolucionário Pasha, um exemplo quase que ideal-típico de racionalidade maquiavélica e de burocrata.
segunda-feira, 18 de outubro de 2010
Beethoven e eu
Tem gente que considera a nona sinfonia de Beethoven a melhor coisa que o ser humano, enquanto espécie, conseguiu realizar.
Não que minha opinião conte de alguma coisa, mas eu discordo. Apesar de desconhecer qualquer coisa relativa a harmonia, arranjo, orquestração, em suma, a qualquer tipo de aspecto técnico da música, minha experiência de apreciador da arte me faz querer simplesmente dizer o que eu penso sobre a obra do grande gênio alemão.
A meu ver, o que há de mais belo na obra de Beethoven são dois de seus quartetos de cordas: os de número 14 e 15. Essas, sim, são obras para serem colocadas ao lado da roda, do futebol e da internet como duas das mais fantásticas coisas que a humanidade produziu. Escutar tais composições me faz pensar que, apesar dos pesares, nossa passagem pelo mundo não está sendo de todo ruim.
Esses quartetos de que falo não são grandiosos como a Nona (aliás, o formato de quarteto de cordas sequer permite esse tipo de grandiosidade), nem têm aquela admiração suave e sincera pela natureza da Pastoral; tampouco transbordam aquela emoção rasgada do concerto para violino em Ré Maior. São obras simples, contidas, e que, ao mesmo tempo, chegam muito perto de transmitir com exatidão a complexidade da alma humana.
Tal fato acontece porque Beethoven percebeu que nós, animais culturais, não vivemos pelas grandes causas. Muito embora acreditemos, por vezes, que dedicamos nossa vida ao mundo, somos, ao fim e ao cabo, um composto de emoções que se chocam, que se sobrepõem, que se substituem, que coexistem. Nossa maior luta é interna, posto que dentro de nós inúmeras vozes falam e calam, sobem e descem, aparecem e desaparecem, e é nisso que estamos verdadeiramente concentrados. O resto, a manifestação externa do resultado dessas lutas, é de fato o que há de menos importante.
Enquanto mostramos ao mundo a nossa constância, a nossa coerência, vivemos atormentados por nós mesmos. Queremos mudar, mas acreditamos que devemos às pessoas a manutenção de nossas posições. Baseamo-nos em indivíduos imutáveis, e acreditamos em sua vontade férrea; entretanto, ao escutar os quartetos de Beethoven, descobrimos que outras pessoas perceberam aquilo que é universal no homem: sua inconstância. E é esta a constatação que me mantém vivo: saber que eu não sou único, e que todos sentem o mesmo que eu.
Não que minha opinião conte de alguma coisa, mas eu discordo. Apesar de desconhecer qualquer coisa relativa a harmonia, arranjo, orquestração, em suma, a qualquer tipo de aspecto técnico da música, minha experiência de apreciador da arte me faz querer simplesmente dizer o que eu penso sobre a obra do grande gênio alemão.
A meu ver, o que há de mais belo na obra de Beethoven são dois de seus quartetos de cordas: os de número 14 e 15. Essas, sim, são obras para serem colocadas ao lado da roda, do futebol e da internet como duas das mais fantásticas coisas que a humanidade produziu. Escutar tais composições me faz pensar que, apesar dos pesares, nossa passagem pelo mundo não está sendo de todo ruim.
Esses quartetos de que falo não são grandiosos como a Nona (aliás, o formato de quarteto de cordas sequer permite esse tipo de grandiosidade), nem têm aquela admiração suave e sincera pela natureza da Pastoral; tampouco transbordam aquela emoção rasgada do concerto para violino em Ré Maior. São obras simples, contidas, e que, ao mesmo tempo, chegam muito perto de transmitir com exatidão a complexidade da alma humana.
Tal fato acontece porque Beethoven percebeu que nós, animais culturais, não vivemos pelas grandes causas. Muito embora acreditemos, por vezes, que dedicamos nossa vida ao mundo, somos, ao fim e ao cabo, um composto de emoções que se chocam, que se sobrepõem, que se substituem, que coexistem. Nossa maior luta é interna, posto que dentro de nós inúmeras vozes falam e calam, sobem e descem, aparecem e desaparecem, e é nisso que estamos verdadeiramente concentrados. O resto, a manifestação externa do resultado dessas lutas, é de fato o que há de menos importante.
Enquanto mostramos ao mundo a nossa constância, a nossa coerência, vivemos atormentados por nós mesmos. Queremos mudar, mas acreditamos que devemos às pessoas a manutenção de nossas posições. Baseamo-nos em indivíduos imutáveis, e acreditamos em sua vontade férrea; entretanto, ao escutar os quartetos de Beethoven, descobrimos que outras pessoas perceberam aquilo que é universal no homem: sua inconstância. E é esta a constatação que me mantém vivo: saber que eu não sou único, e que todos sentem o mesmo que eu.
terça-feira, 12 de outubro de 2010
Sobre Tropa de Elite 2
Quem quer que me conheça pelo menos um pouquinho, sabe que eu sou uma pessoa que adora falar de assuntos polêmicos. Sendo assim, após assistir a uma película tão polêmica quanto Tropa de Elite 2, não poderia me furtar o direito de fazer alguns cometários quanto a ela.
Antes, porém, desses comentários, gostaria de dizer que, apear das ressalvas que apresentarei a seguir, eu gostei do filme. Afora a forçada união de Fraga com a ex-mulher do cap. Nascimento, achei o roteiro do filme muito bem amarrado, com todos os personagens sendo bem explorados em todas as suas dimensões e, principalmente, bem representados pelos atores que participam do longa.
Mas, apesar dessas qualidades, Tropa de Elite 2 é um longa comum em termos cinematográficos, não sendo nenhuma obra de arte. O que há de mais interessante, de mais rico nesse filme, é o quadro político-social que ele nos apresenta, bem como suas críticas e suas denúncias. Sendo assim, é precisamente sobre tais pontos que eu concentrarei minhas atenções.
Em primeiro lugar, Padilha e sua trupe sabem que o espectador de seu filme não é idiota. Assim sendo, ele sabia que todos enxergariam, em Tropa de Elite 2, determinados personagens da cena política e do cotidiano do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, os fatos ocorridos ao longo da narrativa possuem uma imensa semelhança com a realidade: a invasão ao presídio, a milícia tomando a Zona Oeste... tudo isso é coisa que qualquer bom carioca sabe que é verdade. Portanto, o longa tem, sim, um tom de denúncia dirigida à realidade de nossa cidade. Ele não é uma alegoria política como, por exemplo, O cavaleiro das trevas de Chris Nolan.
Nesse sentido, enquanto documento etnográfico, Tropa de Elite 2 é irrepreensível. Demonstra um imenso conhecimento histórico, bem como uma percepção aguçadíssima de como verdadeiramente são as entranhas da polícia, da criminalidade e das instituições políticas do Rio de Janeiro (a consultoria de ex-policiais, políticos e sociólogis tem um grande papel nisso). Com isso, os espectadores certamente saíram do cinema conhecendo melhor o tal do "sistema" de que tanto fala o cap. Nascimento.
Entretanto, a meu ver, as novidades trazidas pelo filme não vão muito além disso.Como acontece em seu antecessor, Tropa de Elite 2 falha não por ser maniqueísta, como muitos disseram (ao contrário de muita gente, eu não acho que o cap. Nascimento tenha sido colocado como um herói matador de bandidos). Sua principal falha foi, em minha opinião, sua covardia na hora apontar o dedo na cara dos verdadeiros culpados pela triste situação de nossa cidade e de nosso estado.
Acontece que é muito simples, como fazem Tropa de Elite e Tropa de Elite 2, escolher um segmento de nossa sociedade e culpá-lo por todos os problemas: naquele, a culpa era do maconheiro; nesse, a culpa é dos políticos (em uma das últimas cenas, Nascimento sugere que a culpa do terrível panorama apresentado é culpa do presidente). Isso é o mais rasteiro senso comum, que habita nosso dia-a-dia no discurso "cansado de ver tanta podridão" de nossa classe média. Isso se reflete, por exemplo, no fato de o cinema ter aplaudido a cena em que o secretário de segurança pública do Rio é esmurrado por Nascimento. Tudo fica, portanto, muito simples: é só esmurrar e botar na cadeia o filho da puta do deputado, do vereador, do governador, do secretário, em suma, quem quer que seja o pária da vez, que as coisas se resolvem.
Mas o nosso mundo não é assim.
O "sistema", como o próprio filme sinaliza, se (re)produz apesar de seus membros morrerem, serem presos, whatever. Isso não se dá porque "cada um quer adiantar o seu lado", como diz Nascimento em uma determinada cena. O sistema se (re)produz porque ele é parte intrínseca de nossa própria sociedade, desempenhando, inclusive, um importante papel em seu funcionamento. Em suma, o próprio poder em nossa cidade (e, talvez, em nosso país) foi constituído de maneira a dar brechas para que aquele panorama apresentado no filme fosse construído, sendo um de seus órgãos.
Não há, nesse sentido, ninguém livre de culpa, e Padilha não teve coragem de dizer isso. Ao falar, por exemplo, do papel da imprensa no "sistema", Tropa de Elite 2 apenas resvalou no assunto. Será que isso tem a ver com o fato de o filme ser produzido pela Globofilmes? Talvez. Mas fato é que a narativa seria muito mais interessante se Nascimento virasse o dedo pro lado de fora da tela, causando o profundo desconforto que o espectador certamente merece, dizendo:
-Sabe de quem é a culpa dessa merda toda? A culpa é sua, meu caro. É você que acha que faz o suficiente, que "faz a sua parte" pagando religiosamente seus impostos, cumprindo todas as suas obrigações, quem dá sustentação ao sistema. O que você não percebe é que o "sistema" que você tanto critica é sustentado por você, ele se alimenta da legitimidade que você a ele concede, de sua muda obediência. o que você não percebe é que, provavelmente, você votou no corno que eu espanquei agora, e que, portanto, você é tão responsável por isso quanto ele.
Mas, ao invés disso, cap. Nascimento fornece a quem o assiste um momento de maravilhosa redenção, executando os socos que cada um acha que merece dar na cara do "político que não presta". Com isso, mais uma vez, o discurso político de nossos artistas não faz mais do que meramente reproduzir um tolo senso comum, concedendo principalmente à classe média carioca o deleite de ver reproduzido aquilo que ela está cansada de saber.
Antes, porém, desses comentários, gostaria de dizer que, apear das ressalvas que apresentarei a seguir, eu gostei do filme. Afora a forçada união de Fraga com a ex-mulher do cap. Nascimento, achei o roteiro do filme muito bem amarrado, com todos os personagens sendo bem explorados em todas as suas dimensões e, principalmente, bem representados pelos atores que participam do longa.
Mas, apesar dessas qualidades, Tropa de Elite 2 é um longa comum em termos cinematográficos, não sendo nenhuma obra de arte. O que há de mais interessante, de mais rico nesse filme, é o quadro político-social que ele nos apresenta, bem como suas críticas e suas denúncias. Sendo assim, é precisamente sobre tais pontos que eu concentrarei minhas atenções.
Em primeiro lugar, Padilha e sua trupe sabem que o espectador de seu filme não é idiota. Assim sendo, ele sabia que todos enxergariam, em Tropa de Elite 2, determinados personagens da cena política e do cotidiano do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, os fatos ocorridos ao longo da narrativa possuem uma imensa semelhança com a realidade: a invasão ao presídio, a milícia tomando a Zona Oeste... tudo isso é coisa que qualquer bom carioca sabe que é verdade. Portanto, o longa tem, sim, um tom de denúncia dirigida à realidade de nossa cidade. Ele não é uma alegoria política como, por exemplo, O cavaleiro das trevas de Chris Nolan.
Nesse sentido, enquanto documento etnográfico, Tropa de Elite 2 é irrepreensível. Demonstra um imenso conhecimento histórico, bem como uma percepção aguçadíssima de como verdadeiramente são as entranhas da polícia, da criminalidade e das instituições políticas do Rio de Janeiro (a consultoria de ex-policiais, políticos e sociólogis tem um grande papel nisso). Com isso, os espectadores certamente saíram do cinema conhecendo melhor o tal do "sistema" de que tanto fala o cap. Nascimento.
Entretanto, a meu ver, as novidades trazidas pelo filme não vão muito além disso.Como acontece em seu antecessor, Tropa de Elite 2 falha não por ser maniqueísta, como muitos disseram (ao contrário de muita gente, eu não acho que o cap. Nascimento tenha sido colocado como um herói matador de bandidos). Sua principal falha foi, em minha opinião, sua covardia na hora apontar o dedo na cara dos verdadeiros culpados pela triste situação de nossa cidade e de nosso estado.
Acontece que é muito simples, como fazem Tropa de Elite e Tropa de Elite 2, escolher um segmento de nossa sociedade e culpá-lo por todos os problemas: naquele, a culpa era do maconheiro; nesse, a culpa é dos políticos (em uma das últimas cenas, Nascimento sugere que a culpa do terrível panorama apresentado é culpa do presidente). Isso é o mais rasteiro senso comum, que habita nosso dia-a-dia no discurso "cansado de ver tanta podridão" de nossa classe média. Isso se reflete, por exemplo, no fato de o cinema ter aplaudido a cena em que o secretário de segurança pública do Rio é esmurrado por Nascimento. Tudo fica, portanto, muito simples: é só esmurrar e botar na cadeia o filho da puta do deputado, do vereador, do governador, do secretário, em suma, quem quer que seja o pária da vez, que as coisas se resolvem.
Mas o nosso mundo não é assim.
O "sistema", como o próprio filme sinaliza, se (re)produz apesar de seus membros morrerem, serem presos, whatever. Isso não se dá porque "cada um quer adiantar o seu lado", como diz Nascimento em uma determinada cena. O sistema se (re)produz porque ele é parte intrínseca de nossa própria sociedade, desempenhando, inclusive, um importante papel em seu funcionamento. Em suma, o próprio poder em nossa cidade (e, talvez, em nosso país) foi constituído de maneira a dar brechas para que aquele panorama apresentado no filme fosse construído, sendo um de seus órgãos.
Não há, nesse sentido, ninguém livre de culpa, e Padilha não teve coragem de dizer isso. Ao falar, por exemplo, do papel da imprensa no "sistema", Tropa de Elite 2 apenas resvalou no assunto. Será que isso tem a ver com o fato de o filme ser produzido pela Globofilmes? Talvez. Mas fato é que a narativa seria muito mais interessante se Nascimento virasse o dedo pro lado de fora da tela, causando o profundo desconforto que o espectador certamente merece, dizendo:
-Sabe de quem é a culpa dessa merda toda? A culpa é sua, meu caro. É você que acha que faz o suficiente, que "faz a sua parte" pagando religiosamente seus impostos, cumprindo todas as suas obrigações, quem dá sustentação ao sistema. O que você não percebe é que o "sistema" que você tanto critica é sustentado por você, ele se alimenta da legitimidade que você a ele concede, de sua muda obediência. o que você não percebe é que, provavelmente, você votou no corno que eu espanquei agora, e que, portanto, você é tão responsável por isso quanto ele.
Mas, ao invés disso, cap. Nascimento fornece a quem o assiste um momento de maravilhosa redenção, executando os socos que cada um acha que merece dar na cara do "político que não presta". Com isso, mais uma vez, o discurso político de nossos artistas não faz mais do que meramente reproduzir um tolo senso comum, concedendo principalmente à classe média carioca o deleite de ver reproduzido aquilo que ela está cansada de saber.
terça-feira, 31 de agosto de 2010
Sexismo, um eterno inimigo.
Há apenas alguns minutos, esse texto de Marjorie Rodrigues foi postado no blog "O Biscoito Fino e a Massa", de Idelber Avelar.
(Antes de acompanharem minha argumentação, por favor, leiam o texto acima linkado.)
Concordo com muitas coisas ditas ali. Entretanto, creio que a vitória de Dilma diz muito menos à diminuição da violência discriminatória e machista diariamente praticada contra a mulher do que, por exemplo, ao "começo do fim" das oligarquias midiáticas brasileiras. Este último acontecimento, sim, está claramente em curso.
Já o machismo, infelizmente, não será derrubado no Brasil apenas com a provável eleição de Dilma (como diz, aliás, o texto citado). Apesar de isso poder engendrar uma maior participação da mulher na política nacional, fato é que, em nossas práticas cotidianas, as mulheres continuam sendo um grupo extremamente ridicularizado em diversas atividades.
Sendo assim, para que esse quadro mude, devemos utilizar o fator Dilma como uma propulsão para essa luta contra o sexismo. Uma "simples" vitória da mulher em um contexto macro não vai, por si só, causar uma mudança na estrutura de nossa sociedade; o que deve ser buscado, no dia-a-dia, são as pequenas vitórias sobre o machismo. Nada disso, porém, deve ser realizado de maneira isolada: juntamente às pequenas atitudes, as mulheres (e também os homens) conscientes devem espalhar tal consciência para o máximo de pessoas, agindo politicamente.
(Antes de acompanharem minha argumentação, por favor, leiam o texto acima linkado.)
Concordo com muitas coisas ditas ali. Entretanto, creio que a vitória de Dilma diz muito menos à diminuição da violência discriminatória e machista diariamente praticada contra a mulher do que, por exemplo, ao "começo do fim" das oligarquias midiáticas brasileiras. Este último acontecimento, sim, está claramente em curso.
Já o machismo, infelizmente, não será derrubado no Brasil apenas com a provável eleição de Dilma (como diz, aliás, o texto citado). Apesar de isso poder engendrar uma maior participação da mulher na política nacional, fato é que, em nossas práticas cotidianas, as mulheres continuam sendo um grupo extremamente ridicularizado em diversas atividades.
Sendo assim, para que esse quadro mude, devemos utilizar o fator Dilma como uma propulsão para essa luta contra o sexismo. Uma "simples" vitória da mulher em um contexto macro não vai, por si só, causar uma mudança na estrutura de nossa sociedade; o que deve ser buscado, no dia-a-dia, são as pequenas vitórias sobre o machismo. Nada disso, porém, deve ser realizado de maneira isolada: juntamente às pequenas atitudes, as mulheres (e também os homens) conscientes devem espalhar tal consciência para o máximo de pessoas, agindo politicamente.
quarta-feira, 25 de agosto de 2010
Eleições 2010
Fato é que Dilma vai ganhar as eleições desse ano. Talvez, a vitória venha ainda no 1º turno.
À mídia manipuladora e elitista e às elites tacanhas que ainda ouvem o que a Veja e a Globo dizem, restará bradar que o povo brasileiro "não sabe votar". Esse pessoal, apoiado no discurso preconceituoso e tendencioso de alguns acadêmicos e formadores de opinião pouco competentes, acha que o povo brasileiro votará em Dilma porque é burro, por conta de um simples apreço pela figura do presidente Lula e por conta dos programas supostamente assistencialistas do governo petista.
Entretanto, o que os analistas políticos comprados que aparecem no Globonews não percebem é que o povo brasileiro tem, sim, uma forte consciência política, que o torna capaz de perceber que Dilma é a promessa da continuação de um projeto político competente que está dando certo demais. Suas pretensas análises ainda estão centradas em pensar o jogo político como uma mera manipulação de imagens, a fim de manipular, também, o voto.
A sorte é que esse tipo de fala não tem mais alcance. Ninguém mais acredita nas mentiras contadas pelas oligarquias que dominam as concessões de Tv e rádio.
À mídia manipuladora e elitista e às elites tacanhas que ainda ouvem o que a Veja e a Globo dizem, restará bradar que o povo brasileiro "não sabe votar". Esse pessoal, apoiado no discurso preconceituoso e tendencioso de alguns acadêmicos e formadores de opinião pouco competentes, acha que o povo brasileiro votará em Dilma porque é burro, por conta de um simples apreço pela figura do presidente Lula e por conta dos programas supostamente assistencialistas do governo petista.
Entretanto, o que os analistas políticos comprados que aparecem no Globonews não percebem é que o povo brasileiro tem, sim, uma forte consciência política, que o torna capaz de perceber que Dilma é a promessa da continuação de um projeto político competente que está dando certo demais. Suas pretensas análises ainda estão centradas em pensar o jogo político como uma mera manipulação de imagens, a fim de manipular, também, o voto.
A sorte é que esse tipo de fala não tem mais alcance. Ninguém mais acredita nas mentiras contadas pelas oligarquias que dominam as concessões de Tv e rádio.
quarta-feira, 11 de agosto de 2010
Os inúteis rituais da democracia
Tenho acompanhado essas entrevistas realizadas pelo Jornal Nacional com os candidatos à presidência da República em 2010.
Depois de realizadas essas entrevistas, palpiteiros de todas as origens possíveis vão às redes sociais falar que esse candidato foi favorecido, enquanto outro foi achincalhado. Ao mesmo tempo, outros tantos sábios analisam o discurso, a forma da retórica e as "propostas" dos candidatos.
Eu, também um palpiteiro, vi que, apesar de um certo candidato ter sido claramente favorecido por uma estranha benevolência do casal Bonner, nenhum discurso prestou de verdade. Percebi, na verdade, um imenso desfile de demagogias, trocas de acusações e tentativas de consolidação e venda de imagens.
A partir disso, acho que a única forma de decidir o voto é a partir de uma análise da proposta dos partidos aos quais pertencem os candidatos.
Depois de realizadas essas entrevistas, palpiteiros de todas as origens possíveis vão às redes sociais falar que esse candidato foi favorecido, enquanto outro foi achincalhado. Ao mesmo tempo, outros tantos sábios analisam o discurso, a forma da retórica e as "propostas" dos candidatos.
Eu, também um palpiteiro, vi que, apesar de um certo candidato ter sido claramente favorecido por uma estranha benevolência do casal Bonner, nenhum discurso prestou de verdade. Percebi, na verdade, um imenso desfile de demagogias, trocas de acusações e tentativas de consolidação e venda de imagens.
A partir disso, acho que a única forma de decidir o voto é a partir de uma análise da proposta dos partidos aos quais pertencem os candidatos.
segunda-feira, 26 de julho de 2010
A little bit of football.
O Brasil é um país engraçado. Aqui por essas nossas belísimas bandas, um treinador que resolve honrar um contrato que havia assinado e, mais do que isso, opta por respeitar um clube e uma torcida que nele tinham depositado imensa confiança, é criticado.
Se bem que, verdade seja dita, quem saiu mais manchado da história foi o Fluminense. Faltou sensibilidade à diretoria, que não deu a Muricy a chance de desempenhar a função mais fácil do mundo? Talvez. Mas essa falta de sensibilidade pode ser explicada e suavizada por dois fatores: 1) Muricy realmente faria uma falta muito grande ao clube, já que não há nenhum grande treinador à disposição; e 2) se faltou sensibilidade ao tricolor, faltou mais ainda ao Ricardo Teixeira, que deveria ter chamado para a conversa com Muricy representantes do Flu.
Se bem que, verdade seja dita, quem saiu mais manchado da história foi o Fluminense. Faltou sensibilidade à diretoria, que não deu a Muricy a chance de desempenhar a função mais fácil do mundo? Talvez. Mas essa falta de sensibilidade pode ser explicada e suavizada por dois fatores: 1) Muricy realmente faria uma falta muito grande ao clube, já que não há nenhum grande treinador à disposição; e 2) se faltou sensibilidade ao tricolor, faltou mais ainda ao Ricardo Teixeira, que deveria ter chamado para a conversa com Muricy representantes do Flu.
segunda-feira, 12 de abril de 2010
Eu não faço a minha parte.
Irrita-me esse discurso de que “cada um tem que fazer sua parte”, para o bom funcionamento da sociedade: tá na hora de alguém desconstruir isso. Como a ideia me incomoda, eu atribuo a mim mesmo a tarefa.
Fazer a sua parte é não ter vontade de potência, essa coisa tão esquecida atualmente na prática política e social. Quando um indivíduo se restringe ao conforto (quase sempre nem um pouco confortável) de sua própria posição na configuração de uma sociedade, ele se abstém da ação.
Entretanto, tal abstenção é simultaneamente uma ação, a partir do momento em que perpetua a ordem vigente e permite que outros detenham o poder; e esses “outros”, não sejamos inocentes de pensar o contrário, não fazem cerimônia alguma de se utilizarem de seja qual for o instrumento (que geralmente é legitimado pela coletividade, sem que ela ao menos saiba disso) para realizarem seus vis interesses.
A mudança não pode, portanto, surgir em um contexto em que todos agem dentro do que é pré-estabelecido: tal é uma lógica totalmente ilógica. Alguém que não tenta extrapolar seus limites não deixa de fazer parte de um rebanho (ui! um clichê), não provoca nada de novo. São aqueles que, mesmo que cientes do limite do alcance de suas ações, vão atrás daquilo que acreditam, que provocam a alteração dos padrões existentes.
Eis aí o nosso problema atual, meus caros: hoje, vejo alguns jovens que pensam que o mundo tal como ele é é insustentável; entretanto eles não enxergam através da ideologia dominante, que quer que tudo seja sustentável de maneira a não abalar, em aspecto algum, o sistema social e de produção atual, o do capitalismo. É precisamente por compartilhar dessa mentalidade que comete-se um erro mortal, por conta do qual quase não há mais revolucionários.
Portanto, em minha opinião, a parcela de ação facilmente realizável não conta de nada, é apenas determinada pelos “donos do poder”, e nos é informada direta ou indiretamente: seja pela mídia ditatorial, seja por essa hedionda oligarquia pós-moderna camuflada sob fofos ideais democráticos.
Fazer a sua parte é não ter vontade de potência, essa coisa tão esquecida atualmente na prática política e social. Quando um indivíduo se restringe ao conforto (quase sempre nem um pouco confortável) de sua própria posição na configuração de uma sociedade, ele se abstém da ação.
Entretanto, tal abstenção é simultaneamente uma ação, a partir do momento em que perpetua a ordem vigente e permite que outros detenham o poder; e esses “outros”, não sejamos inocentes de pensar o contrário, não fazem cerimônia alguma de se utilizarem de seja qual for o instrumento (que geralmente é legitimado pela coletividade, sem que ela ao menos saiba disso) para realizarem seus vis interesses.
A mudança não pode, portanto, surgir em um contexto em que todos agem dentro do que é pré-estabelecido: tal é uma lógica totalmente ilógica. Alguém que não tenta extrapolar seus limites não deixa de fazer parte de um rebanho (ui! um clichê), não provoca nada de novo. São aqueles que, mesmo que cientes do limite do alcance de suas ações, vão atrás daquilo que acreditam, que provocam a alteração dos padrões existentes.
Eis aí o nosso problema atual, meus caros: hoje, vejo alguns jovens que pensam que o mundo tal como ele é é insustentável; entretanto eles não enxergam através da ideologia dominante, que quer que tudo seja sustentável de maneira a não abalar, em aspecto algum, o sistema social e de produção atual, o do capitalismo. É precisamente por compartilhar dessa mentalidade que comete-se um erro mortal, por conta do qual quase não há mais revolucionários.
Portanto, em minha opinião, a parcela de ação facilmente realizável não conta de nada, é apenas determinada pelos “donos do poder”, e nos é informada direta ou indiretamente: seja pela mídia ditatorial, seja por essa hedionda oligarquia pós-moderna camuflada sob fofos ideais democráticos.
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